quarta-feira, dezembro 30, 2009

Revelação

Todos os mares, todos os estreitos, todas as baías, todos os golfos,
queria apertá-los ao peito, sentí-los bem e morrer!
Álvaro de Campos. Ode Marítima


Havia sido formalmente convidada. Viajou com alta carga de stress funcional como era de costume. Manter o foco, era essa a atitude que alimentava a profissional e fazia com que ignorasse o espaço, as pessoas e todo o resto. Aeroporto, táxi, balcão do hotel. Deitou as malas no chão do quarto e abriu as portas da sacada. Daí, a surpresa. O mar. Era o mar. A brisa marítima invadiu o quarto e aguçou-lhe os sentidos. O céu, as ondas e aquele entardecer a fizeram lembrar de quem havia sido. Alguém que estava ao lado, dentro, sabe-se lá em que tempo ou lugar. Por instantes, ela era outra. Recordou-se de velhos e simples desejos. Sentiu-se só e chorou. Sabia que a dor maior da solidão era não ter com quem compartilhar alegrias. Calçou um tênis e correu para a praia, antes que o sol fosse embora. Falou com desconhecidos, sentou-se pouco à vontade junto a um banco em frente às ondas, mas voltou logo para o quarto, para as malas, o texto da conferência que ainda precisava de ajustes. Sim, era essa sua zona de conforto diante de todas as misérias pessoais. Trabalhou até ficar com sono e sentir-se menos ridícula por aquele inadequado êxtase marítimo. A conferência foi um sucesso, muitos a parabenizaram pela competência e inquestionável segurança.

sábado, agosto 15, 2009

Aprendizado Tardio

Não devemos perder a oportunidade de dar aos outros a chance de nos dizer “não”. É libertador e muito elucidativo.

O silêncio é a maior arma contra a estupidez, especialmente quando ela se revela assim, sem máscaras diante de nós.

Um olhar verdadeiramente masculino é algo como borrifar um bom perfume. Você pode até não estar bem no momento, mas alguma coisa em você agradece.

quinta-feira, julho 23, 2009

Sobre a Tirania



Um amigo disse-me outro dia que gosto de mandar. Outro, que sou uma “doce tirana”. Imaginando que, ao contrário, sempre preferi a autogestão anarquista aos regimes ditatoriais, estive às voltas com pensamentos a respeito da “tirania”. “Tirania”, parece-me óbvio, no sentido mais caricatural do conceito, no mais exagerado, só para enfatizar a idéia (pois, afinal, caricaturas podem servir como acentos elucidativos de princípios polêmicos). Refleti, então, talvez para o meu próprio consolo e frente ao meu preconceito iluminista à noção de autoridade, que a tirania, sem aspas mesmo, envolve certa dose de doação, alguma generosidade e muito compromisso e disposição. Alguém já assistiu individualistas autocentrados e egoístas à frente de algum projeto coletivo? Assumindo riscos, administrando contradições de relacionamentos e colocando a própria cabeça a prêmio? (No meu caso profissional, observo muitos carreiristas de carteirinha, os-que-só-pensam-em-si-próprios-e-o-resto-que-se-dane que nunca assumem nada). Fiquei pensando, também, que a gestão tirânica é sempre livre (e talvez seja essa a motivação essencial). A liberdade de escolher os grãos, o terreno, a cor das flores que vão nascer. Não há como planejar um campo sem envolver a alma nas sementes potenciais, sem assumir escolhas e entregar-se. A tirania envolve, dessa forma, liberdade, exposição e perigo. Por outro lado, paradoxalmente, não há como exercer a tirania, sem aceitar a imprevisibilidade: pode chover pouco naquele ano, os ventos não serem favoráveis. Em resumo, o plano pode não vingar. Daí que a tirania não pode ser efetivamente exercida sem alguma dose de flexibilidade e maturidade interior para o fracasso e a frustração. Vaidades em excesso, soberba em altas doses só cabem naqueles que usufruem de esquemas prontos. E campos em flor são terrenos férteis de atração para os que não contribuíram, mas desejam usufruir, os conhecidos oportunistas de plantão. Os que não perderão a chance de criticar os projetos para os quais não contribuíram e julgam ter o direito natural de uso dos benefícios. Assim é que o tirano está sempre acompanhado, mas, no fundo, sempre só. Solitário na reavaliação contínua do plano, do panorama idealizado, no esforço para ajustar as flutuações sem perder a motivação essencial do projeto. E é claro que há resultados desvirtuados, manipulados, distorcidos. Há também tempos em que os objetivos são plenamente alcançados e chega a hora de bater em retirada para manter o impulso criativo e a liberdade. Talvez certos “tiranos” sejam, no fundo, incorrigíveis sonhadores e peregrinos.

terça-feira, junho 16, 2009

Carta Capital

Minha filha queria saber sobre as denúncias em torno da morte de Jango que foram publicadas em Carta Capital e ele nos ouviu conversar a respeito. Ele, que, aos oitenta, é sempre o que assiste aos jornais, lê os livros da moda e as revistas semanais, trouxe-nos um exemplar no domingo seguinte, e em todos os outros em que almoçamos juntos. Depois do episódio, ele sempre nos compra uma Carta Capital antes de dirigir meia hora para pagar nosso almoço, contar histórias que me fazem rir, tomar sorvete ao final das refeições e sair dirigindo à toda como se tivesse vinte e nove anos (por muitos anos, meu pai nos disse que fazia vinte e nove em aniversários). Ontem, depois de uma quimioterapia, assistimos parte do jogo do Brasil juntos. No seu enrolado portunhol, ele reclamou de um tal de Pato, indignou-se, aliviou-se com o pênalti que deu a vitória apertada ao Brasil, enquanto eu, secretamente, torcia para os egípcios. Controlei sua febre com medicamentos e minha natural chateação de colocar a mão nele de meia em meia hora. Ele se esquivou e protestou com seu habitual Reina, eu sou homem. Dormimos pouco à noite, mas hoje cedo, ele mal esperou o dia clarear para agradecer-me, dizer que tudo ia ficar bem e despedir-se olhando o relógio, planejando inadiáveis compromissos. Ao fechar a porta depois de acompanhá-lo ao elevador, segurei a última Carta Capital, a que dá mais detalhes sobre a morte súbita de Jango. E foi impossível não pensar na morte e nos pequenos detalhes que fazem toda uma vida.

domingo, junho 14, 2009

Por aí...

O fato:

Levar-te à boca,
beber a água
mais funda do teu ser -

se a luz é tanta,
como se pode morrer?

Eugénio Andrade
Daqui: Ene Coisas

E a explicação:

Dizer que a paixão implica em perda da razão não parece correto. Talvez seja mais apropriado dizer que a paixão carrega uma outra razão. A paixão, para mim, é como a leitura de um poema. Ou nos arrebata ou não é poesia. Nem paixão. A paixão é como uma palavra, num poema, uma palavra que busca uma rima. Quando duas palavras se beijam, nasce a poesia. Para mim, a paixão tem a ver com aquela "realidade ficcional" na qual estamos imersos quando lemos um romance: uma suspensão temporária do descrédito do mundo e do outro.

Rodrigo Garcia Lopes
E daqui: Orfanato Portátil

sábado, maio 16, 2009

Own

Oi louquinha,

Dia das Mães é pra reforçar como eu gosto de morar com você, como eu adoro ver você loucona* de manhã, adoro te irritar em tardes de domingo, amo conversar assuntos profundos com você e sinto falta quando você não tá em casa pra conversar comigo em momentos sem fazer nada. E é engraçado como todo mundo fala que a gente parece já de cara, porque a gente não é igual só fisicamente, como emocionalmente, e eu agradeço todas as qualidades e defeitos que você passou pra mim e que me fizeram ser o que eu sou hoje, que me fazem ter uma noção maior das coisas, ser uma pessoa bem melhor. Não precisa nem dizer que eu te amo muito e que mesmo quando a gente “se libertar”, eu for pra São Paulo e você pra FNLT**, eu vou continuar no seu pé, te enchendo o saco. Amo você, feliz dia das mães, de sua filha chata que te adora e te admira, M.C.
_____
* (estabanada, stressada e despenteada?)
**Frente Nacional para Libertação do Tibet

sexta-feira, maio 15, 2009

Cinema

Sabia que eram parecidos também nisso. Diriam um olá como uma ponta de iceberg cheia de lacônicos conteúdos e trocariam idéias sobre muitas coisas, ririam de bobagens sem sentido e deixariam o que não se podia dizer assim, encolhido no campo do medo. Havia algo de excessivamente íntimo e profundamente ridículo no amor, amar era definitivamente inadequado e desconfortável. Assim, nada mais útil do que deixar que a história de amor falasse por eles, permitisse o disfarce da atenção nos detalhes sobre a atuação dos atores, o que haviam lido na crítica, qualquer coisa que os desviasse da tensão essencial do filme na tela e fora dela. E a não ser quando havia a traição no toque secreto e ressonante dos braços pacificados na poltrona, era comum a vontade louca de ir embora e afastar o risco.

sexta-feira, maio 08, 2009

Oito de Maio


Não sei se é porque era maio e maio é o mês de Maria e eu sou mariana convicta, ou se é porque era o Wesak e a lua cheia de maio sempre me deixou assim, como diria, sensível aos impulsos mais profundos da alma, ou se porque ela chorou e eu também por constatar que era verdade, havia alguém dentro de mim, ou, quem sabe, porque ela me conquista a cada dia com tantos desafios, com sua inteligência viva e superioridade de espírito, eu não sei, só sei que há exatamente dezessete anos, 19:40h, do ano de 1992, nascia Maria Clara. Deus, esse amor não tem nome.

sexta-feira, maio 01, 2009

Frustração


O caminho parecia-lhe fértil e verde no fundo da janela que emoldurava o perfil no carro. Ele falava e gesticulava de um modo único, com aquelas mãos de proporções equilibradas e seguras no volante. Aceitou o convite dele sem duvidar que o sim era mais do que o aceite de um convite para almoçar naquele local próximo à cidade. Era um sim a ele e a todas as suas sutis investidas. Conversaram muito para não dar espaço ao verdadeiro sentido de estarem ali, anônimos de si mesmos, sob todos os disfarces dos desejos encobertos nos assuntos. Num instante e já se encontravam na vila feito baratas tontas, sem que ela fosse objetiva quando ele perguntava sobre onde iriam. Ele queria um sinal explícito e sua hesitação cheirava a medo. Depois de alguns talvez, você é quem sabe, pode ser, foram parar naquela pousada que tinha um enorme jardim. Achavam que não queriam um quarto, iam primeiro visitar o local. Caminharam constrangidos e cautelosos pela trilha que levava ao chalé mais distante da portaria, sentaram-se em frente a um pequeno lago e permaneceram falando sem trégua naquela manhã ensolarada e incerta. Foi, então, que ela tirou os sapatos e colocou os pés na água para diminuir a tensão, dar espaço aos impulsos sensoriais e naturais de fundo que os uniram. Ele pareceu não entender o gesto, riu dos seus pés pequenos e a convidou para ir embora. O sol agora os queimava. Almoçaram num restaurante de comida sem tempero, falaram mais ainda na longa viagem de volta e se despediram com aquele até mais banal e definitivo.

domingo, abril 26, 2009

A Calúnia e a Fofoca



Aqueles pós, (trouxeram esses lodos).
Da série Os Caprichos de Goya (1792)


Perseverar no cumprimento de seu dever e guardar silêncio
é a melhor resposta à calúnia." (George Washington)

A Calúnia e a Fofoca

Roque Theophilo

Calúnia é um termo que vem do latim, calumnia, engodo, embuste. A calúnia não se confunde nem com a difamação nem com a injúria, outros dois crimes contra a honra. A difamação (do latim diffamare) significa desacreditar, sendo um crime que consiste em atribuir a alguém fato ofensivo à sua reputação de pessoa fiel à moralidade e aos bons costumes. Não se confunde com a calúnia, pois esta consiste numa imputação injusta de fato tipificado como crime. Na difamação o que se busca é desacreditar a vítima, embora sem apontá-la como autora de fato criminoso. (...)
Quanto à injúria do latim injuria, de in jus, injustiça, falsidade, trata-se de um crime contra a honra consistente em ofender, verbalmente, por escrito, ou fisicamente (injúria real), a dignidade ou o decoro de alguém. A injúria ofende o moral, abate o ânimo da vítima, ao passo que a calúnia e a difamação ferem a moral da vítima. (...)
Fofoca é o mexerico, intriga, a bisbilhotice. É um mal que para muitos é divertimento sem importância, mas que é extremamente destrutivo: A vontade de passar informações faz parte do homem, é a comunicação, é uma ação humana natural e normal, mas na maioria das vezes esquecemos do outro e não medimos as conseqüências das nossas palavras. Quando uma pessoa não controla a cobiça, o resultado é a inveja, que desperta o instinto animal de prejudicar o próximo pela difamação. O vaidoso que é infestado pelo orgulho e pela arrogância, é muito propenso a usar a fofoca. (...)
Afirmativas como “onde há fumaça há fogo”, em verdade são armas utilizadas pelos caluniadores. O correto é: “onde há fumaça há um caluniador”. Para bom entendedor, quem está sendo exposto não é o caluniado, mas sim o caluniador: revela-se e desvenda um interior conflitado.
O caluniador é uma pessoa que está sempre em conflito consigo mesmo. Quem está de bem com a vida não tem sequer vontade de caluniar, quer apreciar as coisas boas da vida.
Por vezes, as pessoas lidam de forma inadequada com suas perturbações. Por exemplo, passam a ingerir muita bebida de álcool, ou mergulham num mundo imaginário e se afastam da vida real. Outra forma inadequada é a calúnia. O caluniador procura transferir seu desequilíbrio para outra pessoa. Lançando uma calúnia ele percebe que o interior da pessoa atingida começa a se desorganizar. Para que isso ocorra, a calúnia deve ser impactante, deve penetrar no interior da vítima e estourar como uma bomba. Portanto, agora quem está desequilibrado é o outro e não mais ele. Ou há mais alguém perturbado e em sofrimento como ele.
Como este artifício é fantasioso, não promove um alívio duradouro ao caluniador, como um vício ele sente necessidade de repetir e repetir o ato de caluniar. É uma falsa saída para seu desequilíbrio. É como se alguém pegasse o lixo de sua casa e jogasse no pátio do vizinho. Por alguns momentos tem a sensação de estar limpo. Mas o lixo reaparece na sua casa, pois ela é o gerador de lixo.
Existem dois tipos de caluniadores: aquele que calúnia sistematicamente e aquele que o faz num momento em que sua vida não vai bem.
E existem também as pessoas que levam adiante a calúnia gerada por outro. É um fenômeno que acompanha a humanidade desde sempre. Um dramaturgo romano, Plauto, escreve em uma de suas peças: “Os que propalam a calúnia e os que a escutam, se prevalecesse minha opinião, deveriam ser enforcados, os primeiros pela língua e os outros pela orelha”.
Brincadeiras à parte, temos que aprender a lidar com estes fenômenos. Todos estamos sujeitos a ele. Sheakespeare escreveu: “Mesmo que sejas tão puro quanto a neve, não escaparás à calúnia”.(...)
Aquele que se percebe gerando calúnia se beneficiará de uma ajuda profissional para procurar lidar de uma maneira mais eficaz com seus desequilíbrios.
Provavelmente, graças a esse poder contaminante do pensamento primário é que, muitas vezes, julgamos uma causa por sua aparência, brigamos com amigos por detalhes fúteis e esquecemos o imprescindível para guardar o periférico. (...)

quinta-feira, abril 23, 2009

Os Olhos Mentem



"O dia mente a cor da noite
E o diamante a cor dos olhos
Os olhos mentem dia e noite a dor da gente"
...
metade de mim agora é assim
de um lado a poesia, o verbo, a saudade
do outro a luta, a força e a coragem pra chegar no fim

e o fim é belo, incerto, depende de como você vê...

(Fernando Anitelli, da troupe O Teatro Mágico, indicação da Saori)

segunda-feira, abril 20, 2009

Ofélia


Para os amores mortos e loucos, - aqueles que se auto-sacrificam e, envoltos em flores, ingenuidade e delicadeza se precipitam nas águas, - a fluidez de Ofélia de Elsinore, o emblema do sonho e da fragilidade em cada um de nós.




J.E.Millais, Ophelia, 1851.


Às vezes, quando vou por altas horas, quando
fujo através da noite, a este amor que reveste
de um tênue véu de névoa a face do meu sonho,
de lábios infantis que, uma e outra vez, murmuram
uma queixa, como a de alguém que se maltrata,
um murmúrio, afinal, que só tu poderias
compreender, fico a olhar os jardins solitários
que ornam a calma azul por onde vou passando.
***
E às vezes, paro e sonho à frente de um cipreste;
outras, invejo o ardor de um canteiro tristonho
alvos lírios claustrais que aromam e fulguram,
como fantásticos turíbulos de prata.
Outras, quando anda a lua entre as ruas sombrias
e as flores tomam o ar de votos funerários,
cada aléia é como um regato cintilando,
onde um Ofélia, de alva e imponderável veste
loira e fria, tombou, morta de amor e sonho.
***
Junto às grades hostis que os jardins enclausuram
e que, ao fulgor da luz, são de ouro, bronze ou prata,
descanso, muita vez, as mãos longas e frias.
E enquanto a lua evoca extáticos cenários
de paisagens do polo e torna em verde brando
todo o azul que lhe nimba a tristeza celeste,
das grades através, como através de um sonho
de prisioneiro, a cujo olhar se transfiguram
as visões do exterior, tenho a visão exata
da noite que convida às grandes nostalgias.
***
Eu sou o doce irmão dos jardins solitários,
que lhes conhece a dor, que os vê da sombra, olhando
pelo ermo e triste e verde olhar de algum cipreste...
Uns são feitos de tudo, enfim, que há no meu sonho.
E é por isso, talvez, que ora ardem e fulguram,
ora são tristes como esses vitrais de prata
onde Cristo ergue a Deus as mãos longas e frias.
***
Eu sou o doce irmão dos jardins solitários,
desses jardins que exalto, amo e celebro,
quando por horas mortas vou,
do amor que me reveste de amargura, fugindo,
ao longo do meu sonho.
***
E, ao longo do meu sonho, os jardins se enclausuram de lágrimas!
(Ah! sobre essas grades de prata quando virás pousar as mãos longas e frias?
Quando abrirás, sorrindo, os jardins solitários, tu que hás de amar-me um dia e que eu espero? Quando?)
***
GUIMARAENS, Eduardo. A divina quimera (1916)

sexta-feira, abril 17, 2009

A Forasteira

Vejo o mundo com lentes
E a sensação estrangeira
De estar sempre de passagem
Com pronta e pesada bagagem

Na mala segredos absolutos
Restos de sonhos cansados
E o tédio infindo de viajar

De ver, ouvir, estar
E não chegar nunca

domingo, abril 12, 2009

Agrocultura e o Amor

Somewhere in time - 1980

Em terra de machões, os homens maduros preferem as mocinhas, ainda mais que os outros. Tem-se aquela coisa de afirmação da virilidade em curva descendente, além das acentuações dos traços do agroman: essa é minha mulher, não é jovem e bonita? Ainda dou no coro. O resto, ou é gigolô, ou é casado, ou é gay. Bem vindos ao ceticismo de entrada e à preguiça amorosa das lobas. Com certa vergonha, elas ainda acreditam, secretamente, no amor. Apesar de tudo: dos casamentos desfeitos, das desilusões, dos cavalos que chegaram sem os príncipes. Ainda assistem Em Algum Lugar do Passado com seus lencinhos e preferem sonhar com amores de ontem, ou com os que virão quando as antenas estiverem mais ajustadas e eles as cobrirem de romantismo novelesco e aceitarem dormir em quartos separados. Elas mantêm-se solitárias, claro. Aut Caesar, aut nihil.

domingo, abril 05, 2009

A Dor

“Conclusão: a própria dor deve ter sua medida: É feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira da nossa dor.”
Paulo Mendes Campos

daqui:
http://colunistas.ig.com.br/palavrasdafal/2009/03/30/nao-e-justo/

domingo, março 29, 2009

Então

Então, minha mãe estava doente e queria conhecê-la. Não deu tempo. Ela faleceu antes. Uma um ano antes da outra. Ter quarenta anos é, dentre outras coisas, começar a participar do cruel e implacável espetáculo humano de perdas sucessivas. Depois ainda querem que conheçamos pessoas novas para amar todos os dias.

Então, ela, que já sabia, entendeu profundamente que o maior inimigo do amor não é o ódio, é o medo.

Então, ele contou que todos os seus problemas estavam em torno de uma criança sofrida. E que ao buscar uma imagem que o confortasse, ele via a mãe, falecida, ajeitando-lhe um cobertor durante a noite. A busca desse aconchego estava, todos os dias, acima do preço que tinha que pagar para recebê-lo. E ele estava farto de pagar o preço para se cobrir de amor.

Então, ele revelou que discutiram como eram opostos nos aspectos profissional e emocional. Perguntei-lhe sobre mim e ele deu-me o xeque mate: profissionalmente você é perfeita, emocionalmente, você é um blefe.

quarta-feira, março 18, 2009

Ansiedade


Faça um chá de erva-cidreira-folha-corta-a-mão que sua avó tinha no quintal. Ainda quente, coloque numa xícara alta, decorada, a que você acha linda e que, de preferência, tenha sido um presente intuitivo de um amigo que você ama. Coloque-a ao lado do computador e curta devagar o prazer de segurá-la por inteiro, os quatro dedos na alça grossa, a outra mão que abraça o copo. Logo você se sentirá mais aquecida e menos trêmula. Feche os olhos por instantes, respire devagar, sinta o aroma. Tome o chá em pequenos goles intercalados, entre hiatos de pensamentos tristes, questões insolúveis, cansaço criativo. Ensaie um texto, escreva sonhos cansados e espere o poema.

terça-feira, fevereiro 24, 2009

Sanidade Mental

Estou aqui por um motivo simples. Preciso de um atestado de sanidade mental (por que diabos estou com a mão fria?). Ah, questões de admissão em emprego, aprovada em primeiro lugar, obrigada (cof, cof). Sim, estou bem, sou daqui mesmo, professora, acho que por vocação (que divã esquisito). Tenho uma filha adolescente, detalhe importante. Hã? Vida afetiva? Nula, quer dizer, não que eu seja contra, mas no momento, assim, sozinha (contenha-se). Sim, houve alguém, já faz um tempo (sem detalhes sua burra). Fui casada, contribui com a instituição (sorriso amarelo). Amigos, poucos, às vezes um cinema, um encontro na casa de alguém, muitos conhecidos (preguiça mortal de gente, silêncio, por favor). Estou bem, sim, feliz pela aprovação, claro. Imagine, obrigada (meu cabelo está horrível, estou sem batom e meu tênis está um lixo). Depressão? Não que eu saiba. Dores de estimação, melancolias, tristeza, isso sim, de vez em quando com motivos acho que justificados, quase sempre. Religião? Ah, sim, católica não praticante, quase agnóstica (perdão, Deus). Psicanálise freudiana? Não, fiz algo assim, terapia meio gestalt, meio transpessoal (santa, cale a boca). Caminho sim, exercícios regulares (descarada), gosto bastante embora tenha pouco tempo (o que isso tem a ver?). Passei no teste? Ah, que bom, obrigada. Como? Desculpe, não entendi. Bem, é fácil me conhecer, só me ligar (cretino). Caminhar juntos, por que não? Amanhã, sim (danou-se), combinado. Ligo sim, pode deixar (morri).

segunda-feira, janeiro 12, 2009

De imaginários e iconografias

(porque o real é aquilo que imagino)
Índole Investigativa

Amo tudo aquilo com o qual me envolvo. E funciona assim com coisas, conteúdos, pessoas. E o envolvimento nem sempre é desejável, nem sempre é voluntário. Conheço, muitas vezes por algum estímulo mais ou menos consciente, fruto de alguma escolha ou obrigação. E é assim que disponho-me a abrir para investigar, ver, relacionar, ouvir, compreender. E este esforço me salva do tédio, cria redes de significado, começa a fazer parte de mim de alguma forma. Então, independente do universo de valor deste objeto, ele passa a ser amado. Num contexto onde todos só querem se envolver com aquilo que amam, eu, ao contrário, apaixono-me por tudo aquilo com o qual me envolvo.


Iconoclastia

Reencontrei um antigo namorado. Um ex-namorado importante, vale dizer. Ele é casado e me convidou para jantar em sua casa. Numa reunião com amigos íntimos, coloquei o convite em pauta. As opiniões se dividiram. Alguns acharam que eu deveria ir, seria uma forma de transformar a relação, profanar o ícone como uma referência intocável do passado (isso ajudaria no presente, argumentaram). Outros opinaram que não. Seria de uma formalidade constrangedora e desnecessária, quase uma dor. E, depois, quem disse que é bom destruir referências? Desde que não nos imobilizem, modelos ideais servem como parâmetros daquilo que realmente importa, refúgios em momentos de aridez emocional.