sábado, dezembro 23, 2006

Sub-síndica*, a seu dispor

7:00 da manhã
Dona Heloisa, bom dia. Desculpe-me incomodar, síndico viajou, né? É que vou sair agora e preciso de vale transporte. Não vou de ônibus não, mas a senhora sabe, direitos são direitos. Vê se quebra o meu galho.

9:00
Dona Heloisa, a Cláudia, a chata do segundo andar, quer falar com a senhora urgente. A senhora vai dar aulas? Pois é, só que ela está uma fera porque a faxineira a chamou de capivara.

9:30
Dona, Heloisa, aqui é a faxineira. Só pra dizer que é tudo mentira, eu não xinguei não. E, aquele chicletes que aquela doida jogou no hall há sete dias atrás para testar minha limpeza foi um erro. Tava muito grudado no chão, não consegui retirar mesmo.

9:35
Dona Heloisa, aqui é a Cláudia. Como vai? Estou bem, obrigada. Posso fazer-lhe uma visita? Preciso que o condomínio resolva o problema da faxina e um desentupimento na minha área de serviço. Da última vez que meu filho jogou o carrinho no ralo...ah, desculpe-me, a senhora vai dar aulas agora? Está bem, acho que vou eu mesma chamar o prestador de serviços, depois ele leva a conta pra senhora.

13:00
Dona Heloisa, sei que incomodo, a senhora tá descansando depois do almoço, né? Mas é que as garagens estão todas com as luzes pifadas. Se estão queimadas? Não verifiquei ainda, mas já chamei o eletricista e ele cobrou R$ 70,00.

14:00
Dona Heloisa, a supervisora das faxineiras precisa falar com a senhora. Falei que a senhora saiu, depois a senhora liga pra ela, pode ser?

16:00, 18:00, 19:00...

1:00 da manhã
Dona Heloisa, a senhora estava dormindo, não é? Desculpe-me. É que estou extasiado(?). Alguém jogou uma garrafa de cerveja do décimo andar e eu vi. Isso é um absurdo....e blá, blá, blá. Olha, eu e x i j o que a senhora aplique uma multa e, se precisar de mim, a senhora sabe, de uma presença masculina, é só chamar. Boa noite.
___________________
*Sub-síndica: Heloisa, no auge do processo de purificação cármica, sob as influências planetárias de seu inferno astral.

terça-feira, novembro 28, 2006

Encrencada

Abre a porta. Acende as luzes. Chama seu nome. Sem respostas. Vai até o seu quarto. Onde ela estaria? Pega o telefone e liga em seu celular e sua falta de esperança se concretiza: o celular toca no quarto, a filha novamente esquecera de levá-lo. Tenta se acalmar, “ela deve chegar logo”, diz a si mesma. Liga a TV, porém não consegue se concentrar no final do filme da tarde. Olha a janela e percebe que o sol já ia embora dando lugar à noite na hora mais traiçoeira e perigosa. Deixara-a com um grupo de meninos para assistir um ensaio. E o que diria o pai sobre o tal ato de uma ex-esposa? Prefere não imaginar. Escurece. Desespera-se. Faria algo. Pega as chaves e sai de casa. Procuraria a filha. Antes, liga para conhecidos, amigos. Descobre o lugar. Vai até lá, mas a informam que dali sua filha já havia ido embora. Coração na mão. Por que deixara? Algo havia acontecido. Dirige rapidamente, olhando para as ruas, esperando vê-la por ali. Decide, então, ligar para casa. Após algum tempo, alguém atende. “Alô”, responde. “Filha?”, “Sim, sou eu!” Minutos de alívio, solta o ar preso nos pulmões, antes de dizer “Você está encrencada”.
___________________
Texto escrito por Maria Clara, minha filha de catorze anos, como parte do pagamento de um castigo. Método antigo para educação de filhos, de eficácia duvidosa.

domingo, novembro 26, 2006

Coisas da Meia Idade


Às vezes, sinto-me com cento e cinqüenta anos. Sério. É como se não houvesse mais novidades no mundo. Tudo já foi dito e escrito, tudo já foi ensinado. Já vivi isso e aquilo, isso já sei, aquilo, também. Dá uma preguiça de viver e de morrer... mas, há outros dias. Em que me vejo com dezoito. Espanto-me, sinto possibilidades, falo como jovens, maravilho-me com fé na vida que pulsa. Preciso reaprender tudo... a velha senhora e a jovem caminham juntas e ensinam-se mutuamente. Quando uma se abate, a outra assume o comando. Ainda bem.

segunda-feira, novembro 20, 2006

O cara é demais, fala sério

Nenhuma palavra dá conta do que somos e isso se relaciona com a nossa finitude.

Hans - Georg Gadamer

quarta-feira, novembro 15, 2006

Redenção

Todas as dores podem ser suportadas
se você as puser numa história
ou contar uma história sobre elas.
Isak Dinesen
Andava sem rumo pelo centro da cidade. A certa altura, tirou os sapatos, pois lhe doíam os pés. Ninguém a percebeu. Olhou-se em vitrines coloridas, observou figuras indiferentes, e uma música antiga na decadente loja com discos de vinil a fez chorar. Lembrou-se de quem era. O corpo pedia o descanso final. As ruas acesas pelas luzes dançantes, o vai e vem de carros enlouquecidos, o trânsito alucinado de pessoas apressadas. Tudo era movimento e ruído. A vida era tão insuficiente. Sentiu-se só, em silêncio. As portas da capela aberta eram um convite ao recolhimento, mas havia gente demais, padres e palavras em excesso, rígidas convenções e incômodas músicas natalinas. Mendigos abordavam carros e passantes. Sentiu-se como eles. Suplicando à vida. Naquele dia, todo o sofrimento do mundo pesava sobre os seus ombros. Por que diabos não desistia? O viaduto sobre a rodovia era um chamado. Olhou a rua, calculou a altura e imaginou segundos de um vôo cego. Teve tonturas e sentou-se com o rosto entre os joelhos. Ninguém a notou. Uma estrela jovem já se fazia ver entre os edifícios. Maldita luz que derrotava a noite da queda na escuridão. Levantou-se e caminhou cambaleante, com um fio de esperança, naquela direção. Estava gelada, mas não sentia frio. O estômago doía, mas não era fome de alimento. Casualmente, um filhote de gato atravessou-lhe o caminho. Era magro e parecia triste. Entreolharam-se. Estáticos, temerosos. O felino aproximou-se devagar para cheirar-lhe os dedos trêmulos de hesitação. Sentou-se no meio fio com o gato a enroscar-lhe as pernas. Tentou lembrar-se do rumo de casa e se havia leite na geladeira. Com o gato no colo, só conseguiu perceber as luzes fortes, ouvir o freio ensurdecedor de carros que se chocavam e sentir uma dor imensa. Naquele dia, soube, afinal, o que é morrer de amor.
________________
imagem: Starry Night - V. Van Gogh

quarta-feira, novembro 08, 2006

Fim de Caso

E como vai ser quando, arrastando-se de amor, você levar um pontapé daqueles em que vai parar na esquina? Não vou insistir para que seja diferente. Mas, e se sua indignação for tanta que a faça debulhar-se em argumentos para tentar uma reconciliação? Não moverei uma palha, sequer. Considere que, na paixão, nada é tão previsível. Você viverá contradições. Vai querer pedir pra ficar. E se ele não quiser? Vou mandá-lo se ferrar. Não, não diga isso. Conte até vinte, antes de qualquer ato impensado. Pessoas não são coisas. E se ele não tiver pena e reagir? Melhor pra ele. Não quero que fique comigo por compaixão. Bah, quer saber? Acho que você ainda não amou. Acha é? Pois tenho outra teoria: seu modelo de amor - dependência tem marcas de culpa cristã.

Perguntas

Tinha aquela incômoda mania de investigar a alma humana. Fazia indagações, muitas. As respostas eram sempre relativas, desconfortáveis. Pareciam-lhe ora ingênuas, ora injustas, ora fragmentadas, não raro arrogantes demais. Até que todas as ansiedades cessaram. Não porque houvesse obtido a revelação última , mas por ter percebido que só podia controlar as perguntas. E foi em torno delas que construiu sentidos. Em lógicas mínimas, suficientes para mantê-lo vivo.

domingo, novembro 05, 2006

Espantalho Descarado




















Espantalho Descarado

ando assim
tipo um erro flácido ambulante
sem êxito, hesitante
disco riscado
fora de catálogo
no pó do instante
ando assim oco, uma crosta
vodu cansado que com a sorte
nem mais dialoga – diamante
ando assim sem linguagem
sem faro, espantalho fora de foco
ando assim
mais opaco que olímpico
esquivo, íntimo, insípido
um mastodonte pensando
desamparado
aspirando a paralelepípedo
ando assim meio buster keaton
um tanto de lágrima hasteando o riso
ando assim raso
indiferente
me divertindo um bocado
eu ando mijando no poste
porque o banheiro está sempre lotado

Marcelo Montenegro. in "Orfanato Portátil", 2003
Imagem: Augusto Gomes

sexta-feira, novembro 03, 2006

Palavras me aguardam

Alguns, dos meus “inúmeros” leitores andaram reclamando de minha ausência por aqui. Minto. Não foram tantos protestos assim, já que a estratégia não costuma funcionar comigo. Se você pode dizer não, nunca diga sim, esse é o lema do cabeça dura. Nos últimos tempos, tenho vindo aqui só para entrar nos links ao lado. Quando posso, leio os blogs dos amigos, mas também não comento. Falta de vontade. Algo ligado, talvez, à minha vida suspensa. Nela, há tão pouco de meu. Tenho prioridades. E são tantas e de ordens tão diversas. Dedico-me ao estudo produzido por outros, reproduzo idéias, cumpro obrigações. Chego a orgulhar-me de minha eficiência em caminhar para tão longe de mim. Palavras me aguardam. Para gritar, chorar, elaborar, tentar entender, talvez. Mas, ainda é cedo. As coisas andam por um fio. Preciso economizar. Além das minhas energias já tão desgastadas e de dinheiro – sempre - é claro, promessas, convicções, expectativas, esperanças, desesperos, elaborações de qualquer ordem. Permaneçamos todos neste silêncio expectante, portanto. Amém.

terça-feira, setembro 19, 2006

Mistério Cotidiano

No ritmo das horas
mãos ordinárias
ensaiam gestos claros
cegos, comuns.
Pesados coturnos
dançam no escuro
com pés previsíveis
rápidos, cadentes.

Mas meu coração sorri
com Djavan, em segredo.

Se eu tivesse mais alma pra dar,
eu daria.

quinta-feira, setembro 14, 2006

Amor além da vida

Tristão acorda ao lado de Isolda com cara amassada. Discute com ela a arrumação da cabana na floresta idílica, reclama da comida do dia anterior. Dá para imaginar isso? Romeu entediado com Julieta, Psique dizendo a Eros que está naqueles dias? Não, não dá. Deve ser por isso que meu primeiro e, único amor - único em muitos sentidos, vale dizer - sonhou comigo a noite toda. Contou-me hoje, num telefonema na hora do almoço. Sobrevoávamos a cidade de mãos dadas. Havia um ataque de naves alienígenas. Éramos super-heróis. Encontraríamos a salvação. Foi um sonho tão real, explicou em meio a outras conversas, com aquela polidez encantadora. Pediu-me que interpretasse o sonho, se um dia lhe desvendasse o significado. Ficarei em silêncio. Não lhe direi que o sonho está em seu olhar sobre nós: no que está acima do bem e do mal. Eros e Psique juntos, no Olimpo, Tristão e Isolda selando o seu destino num amor além da vida. Sem concretudes, por favor. Este é o nosso lugar: o que é intocável e não pode ser realizado nunca. Foi ruim, foi bom. E é assim, a vida.

sexta-feira, setembro 08, 2006

Entre o Mar e o Cerrado

p/ Joel

Tenho sido o que em mim fingiu ser eu, e quando fui verdadeiro não me reconheceram, e fui visto como estrangeiro. Tenho sido para mim mesmo um fingimento surdo de não querer ser quem Eu Sou. E eu bem que queria não chorar por nada que a vida me levasse ou trouxesse. Jamais encontrei o meu menino em mim. Uma certa nostalgia faz-me ter saudades do cerrado quando estou no mar, e maravilhar-me de mar quando estou no cerrado. A parte que em mim é vasta não sabe sentir solidão. Quando sou vasto como o grande silêncio, contenho multidões.

(...)

Já não escrevo para que me amem, nem mais escrevo só para não morrer. Hoje escrevo enquanto vivo.

(Brasigóis Felício – Vozes do Farol).

quinta-feira, setembro 07, 2006

Tarô Mítico

O homem é o sonho de uma sombra. Deve sofrer para compreender. Oréstia, Ésquilo.
Acendo o incenso, coloco um música suave, forro o chão com a toalha rúnica e espalho as lâminas em cartas claras. Íris, a mensageira, enfrenta as dificuldades da estrada. O carro corta-lhe o caminho, impede-lhe de realizar-se como Helena, a Rainha de Copas, uma mulher com vocação para o amor. Está sob o peso de decisões importantes, impasses. Aparentemente, ela viaja rumo à conclusão da viagem. Todavia, num nível mais profundo, submete-se à vontade maior de Zeus, o deus dos deuses. No passado, era com a fertilidade e a abundância solar de Deméter que ela se identificava. Hoje, é no mundo de Hades que caminha. Como a Sacerdotisa - Psiqué, desce as escadas, na escuridão, para o encontro marcado com Perséfone, sua sombra. É sua face de trabalho incessante que mostra aos outros. Ocultamente, entretanto, está submetida às determinações de Apolo, o deus solar. Sob as ordens dos deuses, Orestes, aquele que nasceu marcado pelo peso da maldição familiar, sugere: faça o que está determinado e aceite as limitações momentâneas do seu destino.

domingo, setembro 03, 2006

Banal

Nino faz som no meu ouvido que funciona. Vejo os números da hora embaçada no visor do relógio. 5:30h. É cedo. Meu corpo pensa enquanto minha mente obriga-me a manter-me alerta. Preciso pegar os papéis do mestrado para a reunião. Sento-me na cama e coloco o Nino no colo. Encosto-lhe em mim e faço-lhe carinho por alguns minutos. Digo-lhe frases idiotas e ele retribui com aquele olhar sonhador. Deixo-o ronronando enquanto sigo cambaleante para o quarto de Maria Clara. 5:45h. Checo as horas para manter-me em pé. Preciso preparar a aula de depois de amanhã. Forço o dia, acendo a luz e compenso o ato com massagens nas costas e algumas frases de carinho. Já é hora. Ela faz um gesto reflexo: oferece-me os braços, como se ainda fosse um bebê de colo. Abraço-a com amor e tento estimular o dia com frases de efeito. Nino se faz presente, interpondo-se entre nós para receber atenção. 6:30h: informo-lhe, num tom ameaçador. Preciso enviar o artigo para o congresso daqui a cinco dias. Deixo-a e corro com a comida. Ração para o Nino, café, suco de laranja. Nino convida-me para uma corrida nos corredores. A TV conta-me do mundo, dos dias. Preciso ligar para a advogada hoje, sem falta. 6:30h. O comentarista avisa-me, sem mentir. Maria Clara chega na cozinha, quando já terminei de tomar o café. Ela examina as possibilidades com despreocupada calma e eu coloco a xícara na pia indicando o fim do ritual. Arrumo a mesa, desligo a tv e apago a luz. Ela reclama algo e o sol se faz ver no horizonte. 6:40h. No banho, registro que preciso corrigir os trabalhos dos alunos até daqui a dois dias. Ouço-a com a escova de dentes. Ao prepararmos a saída, invejamos o sono matinal do Nino, agora aconchegado no sofá da sala. Preciso levar Maria Clara ao dentista hoje. Passo batom no elevador, sem olhar-me. Preciso ir na gráfica aprovar o folder do curso. Faltam cinco minutos para as 7:00h. No carro, ouvimos “somos quem podemos ser”.

sábado, setembro 02, 2006

Barroco

em contrapontos
solidão
variações em fuga
euforia
simetria harmônica
tristeza
em episódios livres
e sacralidade
no lirismo contínuo
sob conflitos
hoje só um largo de Bach

domingo, agosto 06, 2006

Post para o Luis Ene

A mulher negra, vestida de branco, banha-se com as flores do Ipê Amarelo. Conta-me de Oxum, da força e beleza da natureza feminina. Lembra-me a potencialidade da árvore, que intensifica sua explosão em flores, quanto mais difícil é o inverno, a seca. O Ipê agradece ao derramar, com gestos suaves, delicadas flores sobre nossas cabeças.

Clarice, antes de dormir:

O que atrapalha ao escrever é ter que usar palavras. É incômodo. Se eu pudesse escrever por intermédio de desenhar na madeira ou de alisar uma cabeça de menino ou de passear pelo campo, jamais teria entrado pelo caminho da palavra. Faria o que tanta gente que não escreve faz, e exatamente com a mesma alegria e o mesmo tormento de quem escreve e, com as mesmas profundas decepções inconsoláveis: não usaria palavras. O que pode vir a ser minha solução. Se for, bem-vinda.

Portanto, escrevo todos os dias. :)

quinta-feira, julho 27, 2006

Hoje

Hoje, meu silêncio dói. Talvez seja porque há vozes e sussurros, uma profusão de sentimentos, uma apatia quase louca, uma ferida que goteja, um corpo cansado, uma teia. Esfumo o horizonte com o acúmulo dos dias e o apagar das horas. Afogo a alma nua num banho quente. Ligo um rádio para encobrir os pensamentos, e o som sai bem baixinho porque a música também me agride. Hoje, meu silêncio grita. Hoje não tenho lugar, nem desejos, nem forma. Hoje, morrer nem faz sentido.

domingo, julho 16, 2006

O Quarto Elemento

-Mãe, você gostou da peça?
-Sim, adorei. Encontros e desencontros no amor, quem não os tem?
-Qual a mensagem dos atores sobre o amor?
-Ah, penso que muitas: amar é correr riscos, é entregar-se, é viver contradições, é "sangrar de um jeito próprio"...
-Em resumo, algo que nem sempre vale a pena.
-Não, ao contrário, algo que sempre vale a pena, apesar de tudo.
-Sua teoria não pode ser aplicada a você, né?
-É que eu amo de forma impessoal, deve ser do signo...
-Mas, a peça não fala do amor universal, mas do amor humano e íntimo.
-É...
-É. Mas, você acha que o amor atrapalha a vida das pessoas?
-(...)
-Você está pensando numa forma sutil de me dizer "sim, atrapalha".
-Acho que "a pessoa é para o que nasce", algumas nasceram para viver junto com outras, outras para ficarem sozinhas.
-(...)
-("é que eu ando tão cansada, e todo amor em mim, dói"...).


____________________
Notas:
*O 4o Elemento é um espetáculo de direção e texto de Tetê Caetano, apresentado no Centro Municipal de Cultura Goiânia Ouro. "Uma história dos encontros e desencontros no amor, um espetáculo que fala com palavras e coreografias aéreas sobre possibilidades, desejos, busca, paixão, desespero, fim e recomeço".
*A Pessoa é Para o que Nasce é um filme de Roberto Berliner sobre a história de vida de três mulheres cegas, seus dramas, misérias e amores. Também apresentado no Centro Municipal de Cultura Goiânia Ouro.
*16 de julho - Data do meu casamento. Há mais de catorze anos. Divorciei-me há 7.

domingo, junho 25, 2006

Inventário

Coisas importantes. Sempre nos atos mínimos. No inventário final, talvez seja o que permanece. A recepção inesperada de um sorriso, o carinho dos alunos, o café quente para acordar o dia, o bolo de chocolate com cobertura de creme de leite da Maria, programa do Raul Gil no hiato despreocupado de uma tarde morna de sábado, a gargalhada na leitura do Drops, a conversa de adultos com Maria Clara, os comentários dos amigos no blog, aquele reencontro no final de uma semana difícil, a aula inteira e energizante na manhã do sábado de sol, os olhos de satisfação dos alunos, as sonecas depois de um bom livro literário após o almoço, o mail surpresa daquele amor perdido, o pequeno reconhecimento depois de árduos esforços, o scrap no orkut, o abraço sincero e amoroso do amigo que você nem vê, o lampejo de esperança. Sutilezas me emocionam. Deve ser por isso que gostei tanto dos poemas de Marcelo Montenegro, o que quer “expressar a vida nas pequenas coisas”:

Buquê de Presságios

De tudo, talvez, permaneça
o que significa. O que
não interessa. De tudo,
quem sabe, fique aquilo
que passa. Um gerânio
de aflição. Um gosto
de obturação na boca.
Você de cabelo molhado
saindo do banho.
Uma piada. Um provérbio.
Um buquê de presságios.
Sons de gotas na torneira da pia.
Tranqueiras líricas
na velha caixa de sapatos.
De tudo, talvez restem
bêbadas anotações
no guardanapo.
E aquela música linda
que nunca toca no rádio.


Poema Estatístico

Tem uma esquina prenha de um latido.
Trechos de pássaros que permanecem
nos muros que ficam. E vice-versa.
Um mail anotado às pressas no canhoto
do tintureiro.
A cirrose portátil. A síndrome do pânico.
O enroladinho de presunto e queijo.

Tem a Mulher mais Linda da Cidade.
Groupies de cabelo rosa. Poodles
da solidariedade. Alguém chorando lágrimas
de tubaína. Penélopes charmosas.
Dick Vigaristas. Um cara que já sai desviando
do cinema Del arte, evitando ser atingido
Por alguma conversa perdida.

Tem a mulher da vídeo-locadora
que não conhece o filme que estou procurando.
Um amigo que diz que escreve só para colocar
epígrafes.
Taxistas infláveis. Manicures em chamas.
Um casal que desce a rua na banguela
prolongando a gasolina daquilo tudo
que um dia fora. Eu ando apaixonado
pela mulher da vídeo-locadora.
Lendo revistas na sala de espera
do consultório dentário. Tem uma
que venta. E um que desiste.
De arranhar os vidros do aquário.

(Marcelo Montenegro)

segunda-feira, junho 19, 2006

Auto-suficiência

Entrou na sala de meditação e postou-se à espera, em silêncio. Alguém conversava algo desinteressante. Sentou-se e manteve o olhar vazio para evitar ressonâncias. Contemplou o dedo ferido pelo sapato. Uma mão cuidadosa invadiu-lhe o campo: as mãos do instrutor. Um óleo, um bálsamo, um carinho, uma vontade de chorar.

quarta-feira, junho 14, 2006

E Viva o Brasil

Alô! Foi assim, de modo imperativo, rápido e ríspido, que a voz feminina atendeu-me do outro lado da linha. É do Hospital do Rim? Arrisquei. É. Ela respondeu, com o tom irônico da idéia implícita: se você discou esse número, é daqui, sim, ô idiota. Ignorei a receptividade e fui logo ao assunto: você tem médico de plantão? Hum? Ela perguntou num tom entre a incredulidade e a indignação. Depois que repeti a dúvida, a fulana encetou uma conversa abafada com alguém (digo que tem ou que não tem? ah, acho que ele foi embora. vá lá ver). Silêncio. Ouço uma TV. O hino nacional. Ah, pode vir. Depois de alguns minutos foi o que disse, antes de desligar, antes que eu ensaiasse uma despedida. Cheguei ao local sem me importar com a identificação de quem havia desligado o telefone na minha cara. Devia ser uma das moças sentadas no hall de espera dos consultórios. Eram dez pessoas, consegui contar, só pra passar o tempo, desviar a mente. Estavam todos em frente à TV. Estréia do Brasil na copa. O médico estaria lá, também, no meio deles? Deus não permitiria, roguei. Sentei-me em algum lugar distante depois de fazer a ficha com uma recepcionista de cara amarrada e retomei minha leitura de Paul Ricoeur, entre mudanças de posição para tornar a dor mais suportável. Com este capítulo, atingimos a meta proposta nos anteriores, em que a ênfase era dada às aporias do tempo fenomenológico...rede globo na copa! A voz do locutor sobressaía-se entre gritos e buzinas. Dor é psicológico. Não estou com dor. Repetia-me entre reflexões a respeito da disposição médica em me atender naquela hora (lá fora estava escrito plantão 24h, azar dele) e o controle da vontade de chorar. Não vou chorar, não vou chorar. Não vou chorar por essa dor, nem por todas as outras. Olhei para cima e concentrei-me nas bandeirolas verde-amarelas que balançavam no teto. Ele chegou apressado: você é a paciente? Não, sou sua mãe, pensei comigo. Fiquei com vontade de rir ao contemplar a figura: aparentava vinte anos, e, dentro do jaleco, uma camiseta da seleção. Eu o tirei de casa na hora do jogo, tive uma satisfação quase sádica ao constatar o fato. Trocamos poucas palavras, o suficiente para que preenchesse os pedidos de exames, indicasse o analgésico que eu já havia tomado meia hora antes e eu fosse rapidamente dispensada. Deve ser rim. Ele concluiu com raro brilhantismo perceptivo. Na saída, atravessei o hall entre as comemorações do primeiro gol. Ninguém notou que não olhei a TV, nem por um instante. Também não fiz comentários sobre minha repulsa à euforia verde-amarela ou ao nosso nacionalismo hipócrita. Corri para casa, tomei mais um Buscopan e me protegi dos fogos de comemoração da vitória do time com um travesseiro sobre os ouvidos. Lá fora, um grito abafado: e viva o Brasil!

quarta-feira, junho 07, 2006

O Cocô do Cavalo do Bandido

Há dias, e não são poucos, em que me sinto assim...

Mas, meus alunos me colocam novamente em pé com tanto carinho e generosidade.
Deus nos conserve nesta relação de amor.

Misticismo

Heloisa, extensão da arte
arte que não se olvida.
Uma - a alma aquece-
Outra- enternece a vida
.


Na faculdade havia uma professora;
Não uma professora qualquer.
Não sei se mulher feito um anjo,
Ou se um anjo feito mulher.

Em seus olhos calmos e serenos,
Havia algo de místico e singular.
Quando surgia na sala,
Como que por encanto,
Algo se punha a brilhar.

Ninguém soube ainda explicar,
Se brilhava por encanto,
Ou se o encanto
Era a luz de seu olhar.


José Maria Alencar – 3o Período

HELOÍSA

Menina, que canta história
Elo, Heloísa, canção
Sob a égide da memória
Traz nos olhos o coração
Alma leve de criança
Mãe de Clara menina
Os olhos que conta a História
A boca que fala e ensina
A mente que ao passado vai
Põe a mão a deslizar
Sob rascunhos e rabiscos
Baús, saudades e cheiros a relembrar
O Elo que liga Heloísa
É tênue como a própria luz
Que do umbigo vai ao céu
Buscando o amor de Jesus
Elo, Heloísa canção
Heloísa Elo coração.

Alba Franco – 1o período

sexta-feira, junho 02, 2006

Guimarães Rosa

"Os rios não querem chegar. Eles querem se tornar mais largos e mais profundos."

terça-feira, maio 30, 2006

Sob o sol das manhãs

Por mais que eu me encha de motivos, não consigo ficar infeliz num dia de sol. O grande Deus Rá, pai do Céu e da Terra, venceu a noite e fez nascer o dia. Eliminou a serpente Apópis e trouxe os deuses na barca da manhã. É como se o astro-rei, soberano, redimensionasse o mundo. Sob o sol morno das manhãs, cores, pessoas, situações, tudo fica renovado e cheio de luz. No banho cálido e protetor do sol, o mundo está seguro. Dá uma confiança panteísta no universo. No sol de lá e no de cá. No que nasce todos os dias, para todos, a despeito de tudo, em todos os lugares. O que mais importa?

sexta-feira, maio 26, 2006

O Manobrista

Quem poderia esquecer aquele sorriso? Fecho os olhos e vejo-o com nitidez. Todos os dias, nas mesmas manhãs, um jovem acompanhava-me no estacionamento próximo ao trabalho. Com uma eficiência sem palavras, ele indicava-me vagas e cuidava para que eu colocasse o automóvel, sem dificuldades, em locais seguros. Nas saídas, postava-se ao pé da rampa de acesso à rua. E acenava-me com um sorriso largo, sincero, amigo. Vestia o mesmo uniforme azul e, por muito tempo, anos até, comunica-mo-nos por estes pequenos gestos diários compartilhados à distância, nos poucos minutos em que eu permanecia na meia luz do subsolo. Incontáveis as vezes em que estava preocupada e séria, ou mesmo distraída, e fui tomada por aquele aceno acompanhado de um sorriso luminoso e acolhedor. Até que um dia, ele se aproximou. Ainda não compreendo porque tive medo. Se foi porque ele era Apolo em sua carruagem anunciando o dia em mil raios de luz e vida, um deus que não se podia macular em sua epifania ou por outro motivo qualquer. Ele chegou bem perto e disse: só para dizer que você tem um sorriso muito bonito. Agradeci sem jeito. E nunca tive a oportunidade de dizer-lhe que era um reflexo da luz que me oferecia assim, tão gratuitamente, todos os dias. Perdi a vaga no estacionamento e ele, provavelmente, mudou de emprego. Deve ter ido iluminar outros becos em que burocratas trancafiados em seus automóveis blindados mal percebem a rua, os deuses e os pequenos milagres cotidianos

domingo, maio 21, 2006

A Saída Estética

Penso que nunca fui realista ingênua. Lembro-me de criança. O quarto era o mundo, as ações rotineiras do meu pai, a segurança, e o jardim, o refúgio paradisíaco. Dona Maria Marcos, a professora de matemática, rezava pai-nossos antes de começar as aulas. Sua voz áspera, sua aparência pesada e agressiva já atrapalhavam minha necessidade de crer nela: dois mais dois dariam sempre quatro, sem reclames. Isso não podia ser verdade. Não é de se admirar, portanto, que sempre estivesse ligada, de alguma forma, às experiências estéticas. As que não se pode explicar. As que recriam realidades, fazem releituras de mundo (por qual motivo envolvi-me com a história e com as aspirações acadêmico-científicas de objetividade? sabe-se lá). Desenho, pintura, teatro, dança. Os rituais das organizações filosóficas que participei na adolescência conferiram-me, por sua vez, um sentido sagrado com ares de mistério. Sempre gostei de vê-los por dentro, com um olhar oculto, centrado em outros tempos, outros mundos. Nada de realidades, portanto. É. Um certo temperamento esquizóide (mãos e pés gelados, necessidade de aterramento físico). Já adulta, em momentos difíceis, são deuses que se levantam e apresentam mitos, heróis. Épicos, trágicos. Os que me trazem o ato catártico, fazem-me perceber a finitude e me ajudam a suportar o caos cotidiano das realidades trazidas pelos jornais, pelas circunstâncias todas. Socorro. Mais do que nunca, preciso de lirismo, de poesia, de romance, de teatro e de gente doida.

terça-feira, maio 16, 2006

Da Esperança

"O que eu penso não é importante. A única frase que quero defender sem nenhuma restrição é que os seres humanos não podem viver sem esperança".

Do filósofo hermeneuta, Hans-Georg Gadamer, antes de morrer, aos 102 anos.

quarta-feira, maio 03, 2006

Punk Rock Não é só Pro seu Namorado!

É o que está escrito na capa do fichário de escola de minha filha adolescente depois que deixou a fase gótico-metal e adotou o estilo punk-rock. Aliás, quando ouço os sons guturais das bandas independentes que ela escuta agora e me lembro dos anteriores, os do tal metal melódico, fico com a certeza de que eu era feliz e não sabia. Contra o sistema e contra o machismo. Marxista e feminista. As más línguas, que hoje me alcunham de culturalista, diriam que joguei pedras na cruz de Cristo. Questão cármica. Devo merecer. Mas, vamos ao punk rock que não é só pro seu namorado, é pra você também. Nele, as mulheres comandam, tipo, tem os mesmos direitos dos homens, saca? Aborto? legalizar, claro. Questão de direitos. E Don’t cry for boys, they are stupid, também está escrito na mochila. Fico em silêncio, até onde posso, observando tudo. Tentando não alimentar a atitude: se seus pais têm alguma opinião a respeito, contrarie, eles estão sempre errados. Mas, aqui, neste espaço, posso dizer. O blog é meu e escrevo o que quero. Sim, ela precisa flexibilizar. Não falo dos direitos femininos conquistados a duras penas e blá blá blá, nem das injustiças sociais e coisa e tal. Falo sobre os excessos. Penso que teria dificuldades em defender o aborto legal. Votaria filosoficamente contra, questão espiritual pessoal. Agora, Deus, como demorei para admitir e reconhecer minha natureza feminina. Na plenitude do ser mulher e orgulhar-me disso. De gostar até de ficar menstruada e de tolerar a tal TPM. E de integrar, com prazer, todos os atributos dessa essência: a prudência, a espera, as características de amor, acolhimento e cuidados que vêm da mãe. De desejar e apreciar a presença masculina em sua diversidade: a pegada, a proteção, a iniciativa (lindo ver como eles acham que podem resolver tudo sózinhos e são tão frágeis, não é?). Pra não dizer dos aspectos sexuais. Sim, fazer sexo integrando as duas naturezas é, algo, efetivamente...divino. A natureza é sábia, não tenho dúvidas. Como as mulheres dos relevos de Pompéia, já enterrei o meu falo, aos quarenta. E, embora, esteja sozinha, e acredite na igualdade de direitos e sonhe com sociedades utópicas, ainda prefiro ouvir música acompanhada. Um dia ela vai entender, assim espero.

domingo, abril 09, 2006

Escuta

Uma amiga de muitos anos separou-se do marido. E, é claro, vive as dores desse momento difícil. Ao perguntar-lhe os motivos de nunca ter pronunciado palavra sobre o assunto, já que éramos amigas, ela explicou: ah, você diria isso vai passar, não há de ser nada. Depois desse episódio procurei ficar mais atenta aos conselhos que dou aos amigos e conhecidos. Especialmente os que estão vivendo sob pressões de circunstâncias internas e externas. Compreendi, pelo acontecimento, e por experiência própria, que não existe nada mais aviltante e inútil do que ouvir receitas de salvação, conselhos superficiais de quem verdadeiramente não escuta. Escutar o outro significa desenvolver certa empatia. Sim, sei, é dificílimo. Ás vezes, impossível (não foi Wittgenstein que comprovou o fato pela filosofia?). Então, podemos apelar pelo respeito. Não o compreendo, mas respeito suas opções. E se o amo, fico ao seu lado, apenas para segurar sua mão, se você quiser, enquanto caminha à beira do abismo. E, se você se desequilibrar, posso ajudar-lhe com minha presença, quem sabe. Não lhe darei soluções fáceis, porque não sou você e não posso estar no seu lugar. Sim, eu gostaria de levar-lhe à força para o lado seguro da montanha. Grito para que você saia desse lugar, mas compreendo que não faço isso por você, mas porque não gosto de estar próximo a abismos. Grito para você, mas falo por mim. Mas, você prefere andar aí. Tudo bem, por amor, meu coração permanece sereno e presente. Ninguém vai lhe dizer isso quando você estiver vivendo uma situação difícil e estiver dispensando conselhos. Melhor juntar dinheiro e pagar um bom analista. Pena. O mundo precisa de bons e amorosos ouvintes.
____________________________
Proust e Shakespeare podiam dar conselhos. Leiam os motivos lá no Dennis D.

domingo, março 26, 2006

É bom cantar...

Quando a gente não tem o que dizer.
É Isso Aí

Ana Carolina
Composição: Ana Carolina
É isso aí
Como a gente achou que ia ser
A vida tão simples é boa
Quase sempre
É isso aí
Os passos vão pelas ruas
Ninguém reparou na lua
A vida sempre continua
Eu não sei parar de te olhar
Eu não sei parar de te olhar
Não vou parar de te olhar
Eu não me canso de olhar
Não sei parar
De te olhar
É isso aí
Há quem acredite em milagres
Há quem cometa maldades
Há quem não saiba dizer a verdade
É isso aí
Um vendedor de flores
Ensinar seus filhos a escolher seus amores
Eu não sei parar de te olhar
Não sei parar de te olhar
Não vou parar de te olhar
Eu não me canso de olhar
Não vou parar de te olhar
____________________

sábado, março 18, 2006

Mate-me Senhor, enquanto sou anjo!

Tenho uma amiga que sempre diz esta frase. Quando está indignada e não encontra solução para os absurdos do mundo. Num café durante a semana, ela me contou um sonho, antes de repetir a súplica. Um em que encontrava um antigo namorado. Ele lhe dizia: amarei-a eternamente, mas sou comprometido. Meu amor por você é sublime, indestrutível. Ela sorria candidamente, ao mesmo tempo em que balançava a cabeça e pensava: também amo a Jesus do mesmo modo, seu FDP. Então, de repente, ela se rebelou. Suavemente, como pedia a circunstância, vale ressaltar. Disse a ele que agradecia amor tão sublime, mas que preferia algo mais pé-no-chão, pele na pele, algo que envolvesse suor, esforço, o sangue da existência. Ele parecia não ouvir. Queria continuar intocável, etéreo, ideal. Ela, então, levantou-se, agradeceu a prosopopéia flácida para acalentar bovinos* e foi embora. Angelical, etérea, inatingível, como exigia o momento.
__________________
*Conversa mole pra boi dormir.

terça-feira, março 14, 2006

O Morador

Mora alguém dentro de mim.
Alguém que me sabe
sabe o tempo e sabe o mundo.
Esse alguém não tem ouvidos
além de sua própria existência.
Com discreta autoridade
alguém ignora minhas vontades,
desfaz projetos e sonhos.
Temo por suas duras determinações
conhecidas logo antes, desde sempre.
Alguém fala forte dentro de mim.
Às vezes, chego a sentir que
somos os mesmos,
mas, ao primeiro desacordo
penso que somos outros.
Aceito-o, então, em meus aposentos.
Submissa, ignorante,
quase inocente, menos distante,
ávida de encontro.

domingo, março 12, 2006

Palavras e Sofrimento

É tão relativamente pouco o que as palavras podem fazer em relação ao sofrimento. Tão relativamente pouco que as palavras podem fazer em relação a seja lá o que for. Mas, que outra coisa temos?

(Höeg, Peter. Senhorita Smilla e o Sentido da Neve).

segunda-feira, março 06, 2006

Celibatária, graças a Deus.

Assisti ao Programa Saia Justa no Gnt, no sábado. Assunto: sexo. E complementos: masturbação feminina (com indicação de manuais na net), preguiça sexual, histeria masculina (pensavam que era doença de mulher, é?), além de outros assuntos como a dificuldade de atualização do mito de Dom Juan (o mascarado prometia casamentos às vítimas, o que, convenhamos, no século XXI não pode ser mais usado como estratégia de sedução). De tudo, destaco uma posição que ouvi das mulheres: celibato não é patologia psicológica, é opção. Sim, sexo dá trabalho. Manter uma libido em altos níveis é um esforço. Pense em sexo, pense em sexo, imagino isso, enquanto escrevo estas poucas linhas e passo os olhos na mesa cheia de projetos, provas, livros e o relógio que marca o início das aulas que vou ministrar ainda hoje. E sexo significa comprometimento, relacionamento, planejamento, prevenção. Para quem tem parceiro fixo, é preciso inovar, seduzir cotidianamente. Tudo muito estudado e pouco espontâneo. Para quem não tem, é preciso escolher e assumir o risco do investimento. Na análise do custo - benefício, as mulheres acham que, muitas vezes, é mais vantajoso apelar para a tecnologia. A que não exige nada mais do que um pouco de técnica e ritmo. Sexo por sexo. Isso é cada vez menos satisfatório. E, admitamos, não anda nada fácil encontrar alguém com boa sinastria astrológica, para a devida ocupação na agenda diária.

quarta-feira, março 01, 2006

A Saída Narrativa

Ouço muitas histórias. De muitas pessoas. Em muitos tons e gêneros. Dos alunos, da família, de alguns poucos amigos. Não raro, as narrativas giram em torno do mesmo assunto, envolvem as mesmas pessoas, que escuto em momentos diferentes, com versões diversas do mesmo fato, da mesma idéia, do mesmo problema. Nem sempre as histórias são sobre outras pessoas. Às vezes, referem-se a mim mesma (um boato alheio, uma opinião, um comentário de alguém), o que é de mais fácil trato. E como aprendo nesta escuta. Aprendo que todos têm razão. Do seu ponto de vista e do seu lugar no mundo. Nestas horas procuro não dizer nada, permanecer em silêncio. E observo que muitos conflitos poderiam ser evitados, com um pouco mais de escuta e boa vontade em ver e sentir o outro, com um pouco mais de flexibilidade. Nada muito significativo, não. Só um pouquinho de sensibilidade. Aquela, garantida entre pessoas que se amam e que precisam se lembrar disso antes de tomar qualquer atitude, antes de emitir qualquer julgamento. Tudo bem, não amamos todo mundo. Mas podemos, pelo menos tentar compreender o outro. Escutar histórias. Parece tão simples e óbvio. Quanto sofrimento poderia ser evitado.
_________
Li num livro o que Jürgen Habermas, escreveu sobre Marcuse em seu leito de morte:

Antes de completar oitenta anos, e preparando uma entrevista, Marcuse e eu mantivemos uma longa discussão sobre como poderíamos explicar a base normativa da Teoria Crítica. No verão passado, quando o vi pela primeira vez após esta discussão, Herbert estava sob cuidados intensivos de um hospital de Frankfurt, com todo tipo de aparato controlando-o à direita e à esquerda. Nenhum de nós sabia que isso era o princípio do fim. Naquela ocasião, em verdade nosso último encontro filosófico, Herbert lembrou a polêmica que mantivemos anos antes, e me disse: Sabe, já sei de onde se originam nossos juízos de valor mais básicos: na compaixão, em nosso sentimento pelo sofrimento dos demais.
(Jürgen Habermas, 1980).

terça-feira, fevereiro 28, 2006

Na Varanda








Sentada na varanda da casa
observo o céu límpido e profundo da manhã.
Cega pelo sol vejo tudo inundado de luz intensa
sobre a grama verde brilhante.
Uma rajada de vento surdo
faz voltas e acaricia-me a face.
Pouso o livro sobre o colo.
De olhos fechados meu corpo é acolhido
e embalado pela luz branca do sol morno.
E se o céu perder o azul?
Ouço a frase num rádio distante
enquanto sinto o vento no roçar das folhas
e planto-me com tronco e raízes.
Estendo os braços para brincar com o vento
compartilho a alegria dos pássaros
e o tilintar dos talheres na cozinha é música.
Uma vibração sonora indica um carro adiante
na estrada em que viajo sentada na varanda
para chegar a lugar nenhum.

domingo, fevereiro 26, 2006

Contínuo

Deito sentimentos na folha branca intacta e o sangue corre pelas veias sem transbordar ou encontrar expressão nos gestos loucos do teclado no silêncio da boca. Os órgãos trabalham em comandos mínimos automáticos e mantém aquilo a que chamo vida por não ter outro nome.Tanta indefinição esgota as linhas e entrelinhas do texto que seleciono tudo e apago os símbolos mesmo que o coração mantenha o ritmo e os olhos fiquem abertos e a folha branca continue sem a tinta das gotas que formam rios represados disciplinados em seu curso.A folha branca insiste e lembra-me do oceano. Desfaço o contratexto e mantenho as palavras sempre poucas. Insuficientes. De todo inúteis.

segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Noturno

Escalo paredes de pedra.
Apoios frágeis
largam-se da base.

O gato cai da janela.

Solto-me das bordas
e sou levada pela rua
em águas incontidas.

(preocupação).

Acendo as luzes.

Sinto frio, calor,
uma pressão nas costas,
que é quase dor.

Algo toca-me a nuca.

(medo).

Ligo o som de
um lamento tibetano.
Mantras ao fundo
revelam caos e sofrimento
no tumulto multicolorido dos passantes.

(dor).

terça-feira, janeiro 31, 2006

Manter o foco

Além de surda, nasci com um desvio ocular de convergência (alguém tem idéia do que é corrigir isso num aparelho em que se fica duas horas olhando para o mesmo ponto, com tanta vida, tanta vida lá fora?)

Morte aos ortoptistas e especialistas!

Meus olhos desejavam abarcar o mundo.

sábado, janeiro 28, 2006

Pois, é.

Eu tinha dezoito anos e fazia faculdade de história. Ele, vinte. Seria arquiteto. Éramos puros e acreditávamos no amor romântico.

Eu poderia começar assim, este post. Mas, vou trilhar outro caminho.

Ontem, amanheci aborrecida, preocupada. Coloquei uma roupa amarela, que me deixou com tonalidade hepática na pele, mas que me lembrava o sol, que tanto amo e necessito. Pela pressa e pelo estado de espírito, acho que mal usei um batom (mulheres entenderão o sentido deste detalhe no decorrer da leitura do texto). Prendi o cabelo num rabo de cavalo despreocupado (meu pouco cabelo não gosta de mim), saí de casa e fui para o trabalho (aquele, dos meus problemas todos e desafios diários). Passei, antes, na faculdade para organizar uns papéis (reinício do semestre na semana que vem) e cheguei ao meu destino final um pouco tarde. Sentei-me na mesa, liguei o micro e permaneci arrumando coisas, como é de costume (a luz do meu escritório é a única que se mantém acesa, por contenção de gastos e pela minha solidão). De repente, vi um vulto que se aproximava. Não o haviam anunciado. Quem seria? Não era um credor, mas ele. O arquiteto, aquele, dos vinte anos. Levantei-me surpresa e ouvi, num abraço afetuoso: tentei ligar para você, mas o telefone não era mais o mesmo, então, resolvi visitar-lhe, pessoalmente. Parabéns pelo aniversário. Fiquei sem palavras (quase disse “beijos para todos”, mas a frase era inadequada para a ocasião). Ele se sentou e conversamos por mais ou menos uma hora. Pareceu-me o mesmo: a mesma tenacidade, a mesma gentileza à toda prova, os mesmos cabelos, agora nos ombros. Contei-lhe que, no ano passado, depois de uma conversa fortuita por telefone, escrevi um texto, inspirado nele, que se intitulava Diálogo Para um Amor Perdido. Ele, então, argumentou: Então, é assim que você percebe? Como um amor perdido? Eu considero um amor eterno.
Pois, é (outra expressão eloqüente para dizer o indizível).
Pois, é.
Em homenagem a ele, vou republicar o texto. E, antes, que me perguntem, ele é casado, sim, e o amor está mais do que guardado, sublimado. Sem esperanças cor-de-rosa, portanto.

Diálogo para um amor perdido

Para L.R.J.
Vazio no estômago, respiração curta. Os dedos gelados discam um número de celular. Está chamando. Demora a atender. Pensa em desligar, mas antes que recoloque o telefone no gancho, uma voz grave, diferente, quase ríspida e sem emoção atende do outro lado da linha. “Alô!” Será ele? E se não for, o que dirá? Desliga? Reflete por um segundo antes de responder hesitante: Gostaria de falar com Diego Lima. A voz sai trêmula e insegura. “É ele”. É ele? Repete de forma incrédula e idiota. “É sim”. Ele confirma num tom inquiridor. Aqui é Marta Flores. “Marta?” Ele quase a interrompe num ato estremecido, de outro tom. “Que surpresa”! Completa. Numa emoção cheia de expectativas, Marta continua: Você pode falar agora? “Estou no trânsito”, Diego responde, “mas chegarei ao meu destino daqui a dez minutos. Posso te ligar de volta nesse número?” Marta desmorona. Ele não quer falar, pensa. Não deveria ter ligado. Se ele fosse objetivo não saberia o que dizer depois de tantos anos. Não é necessário, conclui . Ligo numa outra ocasião, completa Marta com voz firme, desistindo. Todavia, Diego insiste: “Não, por favor! Então ligue para mim daqui a dez minutos, ok?” Está certo, responde Marta, sabendo que não cumpriria a promessa. Não deveria ter ligado, martiriza-se. Quantos anos a separavam dele? Quinze, vinte? Tinha saudades sem dor. Saudades de sua inocência e do amor imenso que sentia. Um amor incondicional, fiel, silencioso, generoso e tímido. E era um amor correspondido. Alimentado por cartas, desenhos e retratos que ele elaborava com arte, bilhetes apaixonados escritos em guardanapos de papel. O tempo corria. 5 minutos. Por que mesmo haviam chegado ao fim? Não conseguia se lembrar. Foi um final distraído. Um “até mais” com um beijo apaixonado no alto de uma escada rolante de um shopping recém inaugurado, recorda-se, em fragmentos. Havia ligado por saudades. Viu sua foto num jornal com divulgação de seus trabalhos artísticos. A mesma tez indiana e os mesmos olhos negros. Os olhos ternos que tanto amou. 12 minutos. Pegou no telefone e o colocou distante. Melhor assim, decidiu. Entretanto, antes que deixasse a sala, o aparelho toca alto. Atende, num sobressalto. “Marta, sou eu, Diego. Você não ligou, resolvi arriscar o número.” Marta enterneceu-se...
Conversaram longamente. Falaram de amenidades, coisas de trabalho, sobre os rumos que a vida de cada um tinha tomado... num diálogo cordial, discreto, tentando disfarçar a emoção. Ao final, nas despedidas, falaram da saudade. Num ato de coragem, como se fosse o último diálogo que teriam em vida, Marta ousa revelar: Eu o amarei pelo resto dos meus dias... “Eu também”, Diego afirma, correspondendo, como fazia sempre. “Independente de qualquer coisa, eu sempre vou amar você”, diz, emocionado. Até um dia, “até um dia”. Desligam.

quinta-feira, janeiro 26, 2006

Beijos para todos

Amanhã é meu aniversário. 42 anos. Não sei bem o que isso significa. A não ser quando olho no espelho e imediatamente me lembro das propostas (sempre recusadas) do médico, meu compadre, que tem uma clínica de estética (o que será que ele quis dizer com as tais propostas, né? Melhor não investigar). Aquário, ascendente câncer (dura por fora, mole por dentro). Não gosto de aniversários. Sou absolutamente sem graça para cumprimentos. Fico encabulada, e por instantes (especialmente quando começam a dizer coisas bonitas e coisa e tal) fico surda dos dois ouvidos. Não trabalhei isso na terapia a tempo. Elogios, então? Deus, que coisa mais constrangedora. Não gosto. Fujo quilômetros. Este aniversário está engraçado, indefinido, como muitas coisas na minha vida. Todavia, depois de examinar a situação como um todo (financeira, emocional, grupal e o resto), decidi com MC e Góia (minha amiga-irmã), que iremos comer uma pizza de rúcula lá na Pizzaria Paulista. Fico aqui torcendo para ir pouca gente (Góia é uma agenciadora sacana, uma fdp*). Para que eu possa dar mais atenção às pessoas e ir embora logo (durmo cedo, que veieira). E, se disserem coisas bonitas, eu vou ficar surda. E, também, dura como pedra, nestes dias de bipolaridade momento down (como diz a Perséfone), em que choro vendo novela. E, se eu tiver que dizer alguma coisa, farei como uma vez me contaram: a moça tinha que fazer um discurso solene e não sabia o que dizer. Então, subiu no palco, agarrou o microfone e arriscou a frase síntese: beijos para todos, obrigada.
______________
*fdp: flor de pequi.

quarta-feira, janeiro 25, 2006

terça-feira, janeiro 24, 2006

Nino na gaveta



Não costumo colocar imagens neste blog.

Mas, no clima da Fal e da Renata, abrirei uma exceção.

A Última Gota

Era a gota que faltava. Para que eu tomasse uma decisão importante na minha vida. Eu já queria fazer isso há muito tempo. Nino e eu vimos um programa, ontem, na TV Comunitária (sim, ele também assiste, embora seja bastante seletivo, e sempre durma no meio, como eu). Já havia começado. Uma mulher com uma expressão simpática e uma voz suave, falava sobre animais. Sobre o comportamento dos porcos (Nino deve ter achado uma bobagem, de início). Ela contou que eles são animais sociáveis e brincalhões, facilmente domesticáveis. Até aí, tudo bem. Gostei das imagens dos porquinhos bebês em diversas situações, embora o Nino já estivesse dormitando. Depois desta cena, a palestrante começou a mostrar o sistema de criação e abate para o consumo de carne de porco. Informou como as porcas ficam obesas, por processos antinaturais, para que produzam carne em abundância e de bom valor comercial. As cenas foram revelando como, a partir de algum tempo, elas só conseguem fazer dois movimentos: deitar e levantar. E eu fui ficando enjoada. Ela, então, começou a mostrar o mesmo processo para a carne de vaca. Animais em abatedouro, sim senhores. Passo a passo, fomos vendo como são enclausurados no corredor da morte, o pânico, os choques para que se mantenham andando, a injeção que os idiotiza (processo sofisticado), antes que recebam as pauladas finais. Uma funcionária de um matadouro, contou, com a cara mais lavada do mundo, que já se acostumou a ver aquilo, embora não ousasse olhar para o rosto dos animais. A cena mais chocante: um boi recebendo a injeção e tombando sobre um vomitório (sim, é assim que se chama), antes que fosse golpeado e sangrado. As cenas do documentário eram intercaladas por profissionais gabaritados que explicavam sobre o “mito da proteína”, sobre as toxinas produzidas por um organismo animal acuado, agredido. A essa altura, Nino já havia abandonado a sala. E eu estava com o controle na mão (vantagem exclusiva de mulheres sem marido), pronta para mudar de canal. Não como carne vermelha há tempos, mesmo, dei de ombros. Não consegui, entretanto, trocar a estação, antes que visse o processo do frango. Os pintinhos (aqueles, amarelinhos, que a gente admirava em calendários) sendo selecionados. Como coisas, os que não estão “perfeitos”(se é que algum animal possa ser perfeito nascendo nessas condições, sem filiação, de maneira forçada) são separados em grandes tanques para serem triturados. Eles têm o bico cortado, pois desenvolvem canibalismo, uma beleza. Isso faz com que comam desmesuradamente a ração, o que é ótimo para o criador. Um dos entrevistados falou que nós somos seres fúteis, pois, além de tudo, queremos consumir a carne de avestruz, de cão, de gato, de perdiz e o escambau. Coloque uma criança africana num quarto, depois de três dias sem comer, com uma maçã e um coelho. Ela escolherá comer a maçã e brincar com o coelho. Ei, não somos carnívoros, PQP, só faltou o cara dizer esta última frase. Tive que me levantar para providenciar um remédio para o estômago. A partir de hoje, não comerei mais nenhum tipo de carne. Sim, eu sei. É antipático e antisocial. Bem, &*$#@*%. Tenho mais de quarenta anos, ainda posso escolher os meus amigos. Em relação aos outros, vou fazer como cavalo em desfiles comemorativos: permanecer cagando e andando.

Não acreditam em mim?

Visitem, com tempo, o site do Instituto Nina Rosa. E mostrem para os seus filhos. Ainda seremos humanos no século XXI? Quem sabe.

segunda-feira, janeiro 23, 2006

Desejo

Eu não quero ver você cuspindo ódio. Eu não quero ver você fumando ópio pra sarar a dor. Eu não quero ver você chorar veneno. Não quero beber o teu café pequeno. Eu não quero isso (seja lá o que isso for). Eu não quero aquele, eu não quero aquilo, peixe na boca do crocodilo, braço da Vênus de Milo acenando ciao. Não quero medir a altura do tombo. Nem passar agosto esperando setembro (se bem me lembro). O melhor futuro, este, hoje escuro. O maior desejo da boca é o beijo. Eu não quero ter o Tejo me escorrendo das mãos. Quero a Guanabara quero o rio Nilo! Quero tudo ter: estrela, flor, estilo! Tua língua em meu mamilo, água e sal... Nada tenho (vez em quando, tudo). Tudo quero mais ou menos quanto. Vida. Vida noves fora zero. Quero viver. Quero ouvir, quero ver. Nada tenho (vez em quando, tudo). Tudo quero (mais ou menos quanto). Vida. Vida noves fora zero Se é assim, quero sim. Acho que vim pra te ver.
(Bandeira. Zeca Baleiro)

domingo, janeiro 22, 2006

Temporal

APROVEITE o dia.
Viva para o PRAZER.
ESCOLHA o que te faz feliz.
Faça tudo HOJE.

(A superficialidade da
auto ajuda motivacional
provoca-me risos).

Escrevo isto enquanto me preparo
para mais um dia.
Em que faço o que não gosto
e não escolho fazer.
No hoje que se tece em estações.
De uma existência, talvez.

Tarefas que se cumprem num tempo humano.
Um átimo do que serve à eternidade
de uma vida impessoal.

Pelo menos, é verão.

quarta-feira, janeiro 18, 2006

Construção de Intimidade

Neste final de semana, reuni-me com alguns primos para o bate papo ameno no almoço de Domingo. Conversamos sobre relacionamentos, sobre a história da família, sobre casamentos. Um deles contou como é difícil a lição da intimidade entre duas pessoas. Relatou que num dos dias da lua de mel, foi ao banheiro da suíte do casal e, constrangido com a proximidade, tentou relaxar e concentrar-se sem fazer barulhos. Aliviar-se no silêncio, como definiu. Esforço inglório. Ao primeiro ruído, surdo e tímido, o parceiro, no outro cômodo, soltou a infame frase que fez com que desejasse estar morto: peidou, hein?
Nada mais constrangedor, rimos às gargalhadas. Fiquei chocada. Eles parecem tão arrumadinhos e sóbrios, tão respeitosos. E eles não se separaram, não. Ao contrário, vão comemorar bodas de prata. Lembramos, então, de uma passagem do filme Gênio Indomável. Quando o psicólogo conta das flatulências incontinentes da esposa já falecida e diz, com o exemplo, que num relacionamento, é a aceitação das idiossincrasias do outro que tece a teia da intimidade. Só eu sabia algumas particularidades dela, e isso fazia com que ela fosse minha, de alguma forma, confessa o psicólogo. Ninguém é perfeito, ele conclui, resta saber se são perfeitos um para o outro.

segunda-feira, janeiro 16, 2006

Roberto Crema

Pouca coisa me interessa na TV. Além do Raul Gil (não riam, é sério), um jornal, de vez em quando, um filme. Outro dia assisti a um filme da Barbie. MC passou pela sala e me lançou um olhar compassivo, enquanto balançava a cabeça num tsc tsc. Há um canal, entretanto, que sempre me detém: o canal comunitário. Ali, há muitas palestras, com assuntos variados que tratam de saúde, de educação, de psicologia, de questões ambientais e outros. Sexta estava lá o Roberto Crema. Da Unipaz. Uma graça. O entrevistador era um autômato, limitou-se a ler suas perguntas, não interagiu com o entrevistado. Pior pra todo mundo. Mas, ainda assim, foi bom ouví-lo falar sobre a necessidade que todos têm de cuidar e de serem cuidados. Cuidar significa escutar o outro, estimulá-lo a curar-se por si mesmo. Cuidar significa assumir uma atitude terapêutica, em relação a si mesmo e ao outro. Grandes dores transformam-se em grandes talentos, quem nunca ouviu a fórmula? Pois, é. De forma suave e poética, Crema falou sobre a crise mundial, sobre as guerras e sobre o trabalho silencioso da Unipaz para estimular a tolerância, a atitude inter-religiosa sem sincretismos superficiais e forçados. É. A gente só escuta as más notícias, e não percebe que uma floresta cresce silenciosamente nos diversos trabalhos para a paz que se espalham pelo mundo. Ele estará em Goiânia no início de março. Assistam.

domingo, janeiro 15, 2006

Recado

Sou deficiente auditiva. Só um dos ouvidos funciona, por uma anomalia congênita. A natureza encarregou-se de me transmitir mensagens importantes: ouça o mundo, em parte. Busque outros tipos de escuta. Faça um esforço, além do habitual, para ouvir e interpretar. Nem todo som é sensorial e ruidoso. Alguns só são perceptíveis no silêncio.

sábado, janeiro 14, 2006

Saori San

Depois de um ano de encontros e desencontros, MC Saori San e eu fomos almoçar num shopping. Conseguimos conversar. Assunto: a complexidade humana, relacionamentos. Cada um com a sua história, a sua dor, a sua forma de ver o mundo e de se relacionar com as pessoas. Compreender isso é importante para ver o outro, acolher suas contradições e retirar dos encontros o que há de melhor. Alguém já disse que se um indivíduo tem uma virtude, apenas, é com essa que devemos nos relacionar. Sem julgamentos. Não há santos ou demônios, concluímos. Também temos nossas idiossincrasias. Converso com ela de coração, colocando-me, também, eu e minha história. Ela, então, apresentou-me uma lista de pessoas: pediu-me um laudo de alguns de seus amigos. E, de brincadeira, como um exercício, fui detalhando minha percepção sobre cada um deles. Ela dizia, às vezes, surpresa: como você sabe isso? Li no seu corpo, respondia. Ela, então, concordava, discordava, argumentava que eu estava sendo tendenciosa em alguns casos, o que provavelmente era verdade (eu admitia, com sinceridade). Falamos, também, de relacionamentos amorosos, de decepções e desilusões. Contei-lhe que isso, inevitavelmente, vai acontecer. E que ela vai sofrer, mas vai sobreviver a isso, também. É preciso saber lidar com frustrações quando nos relacionamos, controlar expectativas (ela já tem namorado). O melhor de tudo foi poder conversar com minha filha, estabelecer um canal de comunicação. Ás vezes, esqueço que ela tem só treze anos. Admiro-lhe a personalidade forte. A firmeza de opiniões, a abertura em relação a questões polêmicas como aborto, homossexualidade, eutanásia. Ela tem um humor sutil, uma ironia certeira que consegue me arrancar gargalhadas. É uma delícia conversar com ela. À noite, vimos um filme juntas, de meia e pijama, no sofá. Eu lhe disse, então, que tinha saudades de minha menininha. Ela, então, aproveitou-se do enlevo nostálgico e sugeriu: então, seja uma boa mãe, vá até à cozinha e faça um lanchinho. Sua menininha está com fome.

Fui dormir cedo. Não raro, ela vai à minha cama para ajeitar as cobertas, dar-me um beijo de boa noite, antes de fechar a porta da biblioteca para conversar com os amigos na net e ouvir bandas de metal.

Amo minha filha. E não é só pelo fato em si. É uma conquista contínua. E ela está se tornando uma bela mulher, em muitos sentidos.

sexta-feira, janeiro 13, 2006

Os Sonhos

Mar adentro, mar adentro
E na leveza do fundo
onde se cumprem os sonhos,
juntam-se duas vontades
Para cumprir um desejo.

Um beijo incendeia a vida
com um relâmpago e um trovão
e em uma metamorfose
meu corpo não era meu corpo;
era como penetrar no centro do universo:

O abraço mais pueril,
e o mais puro dos beijos
até sermos reduzidos
em um único desejo:

Seu olhar e meu olhar
Como um eco repetindo, sem palavras:
mais adentro, mais adentro
até o mais além do todo
pelo sangue e pelos ossos.

Mas sempre acordo
e sempre quero estar morto
para seguir com minha boca
enredada em seus cabelos.

(Ramon Sampedro. Cartas do Inferno)

domingo, janeiro 08, 2006

Alma Nua

Numa festa de final de ano, na faculdade, convidaram um aluno para cantar. Ele, então, apresentou-nos uma música, Alma Nua, de Vander Lee, que passei a ouvir, desde então. Vander Lee, como descobri, depois, é um cantor e compositor mineiro. Dele, já conhecia uma bela música gravada pela Gal Costa : Onde Deus Possa Me Ouvir. Fiquei, ainda, mais encantada com o resto da obra. Alma Nua é uma oração ao Pai. Podemos chamar o Pai do que quisermos, a partir de tradições religiosas ou laicas. Bom saber é que o Pai está naquele lugar de sabedoria, aquele de endereço incerto e que possui algum nome, embora não saibamos bem qual seja. Um lugar especial, portanto, onde podemos nos apresentar nus, com nossas perguntas e solicitações mais genuínas.

Na primeira estrofe, já uma solicitação:

Ó Pai
Não deixes que façam de mim
O que da pedra tu fizestes
E que a fria luz da razão
Não cale o azul da aura que me vestes


Peço ao Pai que não permita que eu compreenda o mundo apenas pela fria luz da razão. Sim, a razão não é suficiente como chave de interpretação do mundo. Os artistas e poetas sabem, pois utilizam a intuição. E, o compositor ainda solicita: mesmo que eu tente verbalizar, compreender racionalmente todas as coisas, não permita que elas sejam apresentadas como pedra fria, letra morta: que minhas coisas tenham o azul das coisas celestes, uma aura nem sempre visível, mas presente, do mistério que as envolve, do sentido que apreendo além da razão, embora não saiba nominá-lo.

Dá-me leveza nas mãos
Faze de mim um nobre domador
Laçando acordes e versos
Dispersos no tempo
Pro templo do amor

Aqui, uma outra súplica importante: o autor pede leveza nas mãos. Quer interpretar o mundo, agir nele, mas solicita fazer isso com suavidade. Intenciona lutar, domar feras, mas pede ao Pai que o ajude a realizar sua ação com poesia, com versos. E que mesmo que sua produção seja dispersa, inconstante e com freqüência temporal variável para o tempo humano, ou mesmo incompreensível racionalmente, ela possa caminhar rumo à beleza. Chicotes, facas e armas só devem ser utilizadas com a linguagem da suavidade e com esta intenção: o nobre desejo de auxiliar na caminhada rumo ao amor. O verso posterior confirma a idéia:

Que se eu tiver que ficar nu
Hei de envolver-me em pura poesia
E dela farei minha casa,
minha asa
loucura de cada dia.

Na criação genuína, onde a razão contribuiu tanto quanto a intuição, estou nu, porque não é possível criar sem desvestir-se. Do que já aprendi, dos modelos absolutamente pré-estabelecidos, que podem auxiliar, mas não determinar os rumos e o resultado da obra final. Para abrir-se ao novo, é preciso esvaziar-se, estar desarmado. E esta nossa nudez, se por um lado nos traz insegurança e frio, veste-nos da beleza, da poesia da criação. Estou nu, mas a ousadia criativa me devolve meu lugar de poder e sabedoria. Esta atitude me confere asas e me faz voar, em êxtase e liberdade. E, também, me faz louco, porque não há como vivê-la sem flexibilidade anticonvencional.

Dá-me o silêncio da noite
Pra ouvir o sapo namorando a lua
Dá-me direito ao açoite
Ao ócio, ao cio
À vadiagem pela rua

Vander Lee continua assim. Pedindo ao Pai o silêncio. A quietude, a partir da qual posso ouvir vozes mais sutis e compreender as coisas simples como um sapo namorando a lua. A parte do valor poético da estrofe, o autor, pede, ainda o direito de ser humano. Errar, talvez, quando usa o acoite, ou dá expressão aos seus desejos. Na estrofe seguinte, ele "exige" o direito de se contradizer, de não ter que ser perfeito.

Ó meu Pai,
dá-me o direito
De dizer coisas sem sentido
De não ter que ser perfeito
Pretérito, sujeito, artigo definido


Na música, ele, também, solicita o ócio. O necessário para perceber o que vem da intuição. Desocupar-se para viver a sabedoria. Quem cria, sabe que não é na correria do relógio humano do tempo que nascem os insights originais. Como ensina: é preciso perder a hora para encontrar a rima.

Deixa-me perder a hora
Pra ter tempo de encontrar a rima
Ver o mundo de dentro pra fora
E a beleza que aflora de baixo pra cima

Minha obra assim, terá significados não visíveis, talvez, mas que podem ser sentidos de “dentro pra fora”, pois nela está presente o que não controlo só com o intelecto, mas que me chega do mistério e é captada, num lampejo, pela minha razão que a expressa. E a transforma em verso, em poesia, em música.

Virar os dados do destino
De me contradizer, de não ter meta
Me reinventar, ser meu próprio Deus
Viver menino, morrer poeta

E, quando eu errar, pois sou humano e contraditório, peço ao Pai para recomeçar, me reinventar e ser o meu próprio Deus, o que é criador, assim como eu. Encontrá-lo em meio à contradição, à dor dos meus erros, à minha falta de direção. Assim, posso viver como uma criança que tem sempre olhos novos e se dispõe a aprender, sempre.

Leiam toda a letra e ouçam a bela voz do compositor no site

http://www.vanderlee.com.br/
(não se esqueçam de vê-lo e ouví-lo no vídeo da música Esperando Aviões, por favor).

E, finalmente, comprem o disco. Valerá a pena.

Cura Hermenêutica

"A única dor insuportável, é aquela que não somos capazes de interpretar".
Jean-Yves Leloup