sábado, dezembro 31, 2005

Passagem

Depois da suprema agonia

Ele a segurou pela mão

e a elevou.


Mostrou-lhe os campos verdes, além.


Era preciso aceitar a dor e a morte

para conhecê-los.

domingo, dezembro 18, 2005

Entrega

Ando por espaços escuros,
entre paredes altas e pedras antigas.

Vejo janelas altas.
Portas centenárias
olham-me de cima, trancadas.

Há um odor indefinido.
Flores envelhecidas,
incensos apagados, cera queimada.

Procuro a passagem obscura,
mas não a encontro.

Todos já foram embora.
Estamos só eu, meus passos abafados e
gestos contidos que movem o espaço.

Piso devagar para aumentar o silêncio
e captar vozes distantes, sons inaudíveis.

O peito respira com força.
Sustenta o peso das costas, arrepios na nuca.

Sem dores ou perguntas.

Sou só sensações.

quinta-feira, dezembro 15, 2005

Sem Efeito

Os últimos dias foram bastante complicados. Neles, pude comprovar minha impotência.

2005 foi um dos anos mais difíceis, trabalhosos e improdutivos que já vivi. Todas as sementes plantadas (com muita dificuldade) caíram em solo infértil. Coincidentemente, hoje fui chamada na Editora da Universidade. Eu receberia uma homenagem, pois a revista que coordenei foi uma das mais vendidas no ano. De presente, um título de mérito editorial e um livro intitulado: Filha do Sol. Foi por esse motivo que me lembrei de partes de um poema:

Na escuridão da lua,
no rigor do inverno,
da guerra que se espalha,
do mundo em perigo,
eu caminho pela encosta rochosa,
semeando trevos...
(Wendel Berry)
______________
Ok.

sábado, dezembro 10, 2005

Acolhimento

Dou forma
às paredes
do peito
em massas de
inquietude
temor
dor.

Alimento
a criança
com leite
sedento.

Abraço o
corpo quente
em tetos
gotejantes
na chuva
fina
fria
incessante.

quinta-feira, dezembro 08, 2005

Reverberação

Quebro a janela.
Voam estilhaços
no vento que dança.

Arrombo portas.
Ganho hematomas
em braços feridos
e livres.

Descubro o telhado.
A luz do sol
inunda aposentos
e me deixa cega.

segunda-feira, dezembro 05, 2005

Mansidão Hermenêutica II

O homem esbraveja agressivo.
Percebo sua postura corporal
e apreendo sentidos ocultos.
Concentro-me na certeza
de que somos animados
pela mesma fonte.
Falo mais alto que ele
e expulso-o da sala.
Ele se acalma e vai
embora, em paz.

(ser manso não é ser passivo,
mas obediente)

sábado, dezembro 03, 2005

Mansidão Hermenêutica

O homem esbraveja, agressivo.
Percebo sua postura corporal.
Apreendo sentidos além
da rigidez aparente.
Deixo que fale.
Cruzo os dedos das mãos
sobre a mesa e permaneço
em silêncio
enquanto leio significados.
Ele me faz muitas perguntas
e dá, ele mesmo, as respostas.
Visualizo seu coração e
concentro-me na certeza de
que somos animados
pela mesma fonte.
Ele se transforma
num pequeno ponto negro
sobre uma folha branca.

sexta-feira, dezembro 02, 2005

Nino, o predador

Nino está feliz. Recuperou o peso e está gordinho de apertar. Cresceu o pelo. Corre e brinca por toda a casa (nas poucas horas diárias em que se mantém acordado). Esfrega-se tanto no Trilogia de Nova York do Auster que penso que deseja comê-lo. Faz o mesmo com as violetas. Chamo-o pelo nome para oferecer-lhe algum carinho e ele nem move a cabeça. Só se aproxima depois de um tempo de pausa e, quando finalmente atende ao chamado, disfarça ao cheirar uma pequena formiga, ou algo insignificante pelo caminho. Deixa claro, dessa forma, que não atende ordens. Quando é o contrário, faz tudo para ser notado. Sobe no teclado, ajeita-se entre mim e o monitor, mia em vários tons. Nesta semana, torturou uma lagartixa. Ele a perseguiu como se fosse um brinquedo, até que ela expirasse. Nosso bichinho de pelúcia, não passa de um felino predador, pensei. Fiquei desapontada e dei-lhe conselhos. Contei-lhe a história do filhote Zumbi, da Carmem, que foi adotado pela gata Nina que o amamenta com farta produção de leite, mesmo sendo castrada. Ele ignorou e me lançou aquele olhar doce, amoroso. Perdoei tudo.
____________
(Este post é dedicado à Maria do Carmo de Castro Teixeira. Ela tem uma alma nobre, tecida de sensibilidade, de beleza e do amor pela vida das plantas e dos animais).

Incoerência

Estou apenas esperando o amor para poder afinal me abandonar inteiramente em suas mãos. Por isso já é tão tarde e por isso fui culpado de tantas faltas.
Elas vêm com as suas leis e os seus códigos para obrigar-me a uma decisão rápida; mas consigo sempre afugentá-las, porque estou esperando o amor para me abandonar por fim em suas mãos.
As pessoas me censuram e me chamam negligente; não duvido que tenham razão para me censurar.
O dia da feira terminou e cessou o trabalho no mercado. Esses que vieram e em vão me chamaram, voltaram desapontados. Estou apenas esperando o amor para finalmente me abandonar de todo em suas mãos.
________
P.S. O título é meu e o texto é do TAGORE, Rabindranath. Gitanjali. Oferenda Lírica. Livro pelo qual recebeu o Prêmio Nobel em 1913.

quinta-feira, dezembro 01, 2005

Espasmo

Digo menos
do que sei
na palavra solta
sempre contida
inexata.
Ela vem
de algum lugar
entre o estômago
e o coração.
Escrevo dor
como quem
escreve amor
em movimentos
involuntários
e rítmicos.

quarta-feira, novembro 30, 2005

Espelho

Olhos.
Só eles existem
no cristal especular.

Uma rosa no peito.
A dor incessante que
jorra da fonte rubra.

Um vazio incômodo.
O que preenche espaços
entre o estômago
e o coração.

Uma alma nova.
É a que sai pela boca
numa golfada
de vômito.

segunda-feira, novembro 28, 2005

Casa

Do quarto à sala
os mesmos gestos.

Portas trancadas.
Janelas de vidro.

Paredes
quadros
livros
retratos
olham inertes.

Passos
armários
a caneta
roçando o papel.

A mandala rúnica
evoca sons
sobre a mesa.

Tudo é ruído e silêncio.

sábado, novembro 26, 2005

Engano

Tomou-a nos braços
e a levou para longe do vale da morte.
Mostrou-lhe campos verdes.
Sua expressão era doce
e sua boca estava cheia de palavras.

Vê, isto tudo pode ser nosso.

Foi, então, que ela percebeu.
Aquele não era o caminho do encontro.
Agradeceu-lhe o gesto
e voltou solitária aos campos de luta.

terça-feira, novembro 22, 2005

Luxor

Ouço o vento dentro e fora.

A respiração espectral
dos olhos atrás dos portais.

Com olhos semicerrados
pela luz cega caminho.

Em círculos inúteis
por entre as altas colunas.

Tudo está reduzido a pó.
Poeira, pedra, ruína.

segunda-feira, novembro 21, 2005

Expectante

Depois do medo da noite
o dia tem uma estranha calma.
No vazio desta antiga espera
tudo agora é silêncio.

sábado, novembro 19, 2005

Estratégia

Na ataraxia
acima do pensar e do sentir,
cumpro o caminho sobre os
ponteiros dos dias.

Sonho com a luz do sol
à meia noite.

Sento-me à sombra
sob o sol do meio dia.

Então, simplesmente, caminho.

quinta-feira, novembro 17, 2005

Pendências

Em meio à correria dos meus dias insanos, no trânsito, em casa antes de cair exausta na cama, tento fixar-me em algo desimportante e inofensivo. Descubro que não são muitas as opções. Um pensamento me leva a outro, que evoca tal emoção e assim vai. De galho em galho, vou tentando desviar-me do que vejo, do que penso, do que sinto. Para resistir, sobreviver, guardo tudo no baú das pendências. Amanhã vejo isso, amanhã telefono, amanhã respondo a este mail, amanhã resolvo isto, amanhã...sempre um dia que não é hoje e que não chega nunca. Vida pendente não é vida. Mas este é mais um pensamento inútil. Abro um livro qualquer da pilha que está na cabeceira da cama e leio:

Meu coração dói-me como um corpo estranho. Meu cérebro dorme tudo quanto sinto. Sim, é o princípio do outono, e o conhecimento claro, na hora límpida, da insuficiência anônima de tudo. O outono, sim, o outono, o que há ou o que vai haver, e o cansaço antecipado de todos os gestos, a desilusão antecipada de todos os sonhos. Que posso eu esperar e de quê? Já, no que penso de mim, vou entre as folhas e os pós do átrio, na órbita sem sentido de coisa nenhuma, fazendo som de vida nas lages limpas que um sol angular doura de fim não sei onde. Tudo quanto pensei, tudo quanto sonhei, tudo quanto fiz ou não fiz, tudo isso irá no outono...

(Pessoa, F.O Livro do Desassossego)

domingo, novembro 13, 2005

O Mestre e o Cavalo

(Viagens ao Oriente, igrejas, imagens, grupos de meditação, etc, etc...quantas voltas temos que dar até chegar aqui mesmo?)
...

Um discípulo, que amava e admirava seu mestre, resolveu observá-lo em todos os detalhes, acreditando que, ao fazer o que ele fazia, também adquiriria sua sabedoria. O mestre só usava roupas brancas, o discípulo passou a vestir-se da mesma maneira. O mestre era vegetariano, o discípulo deixou de comer qualquer tipo de carne, substituindo sua alimentação por ervas. O mestre era um homem austero, o discípulo resolveu dedicar-se ao sacrifício, passando a dormir numa cama de palha. Passado algum tempo, o mestre notou a mudança de comportamento de seu discípulo e foi ver o que estava acontecendo. "Estou subindo os degraus da iniciação, foi a resposta. "O branco de minha roupa mostra a simplicidade da busca, a alimentação vegetariana purifica meu corpo e a falta de conforto faz com que eu apenas pense nas coisas espirituais". Sorrindo o mestre o levou para um campo, onde um cavalo pastava.“Você passou este tempo olhando apenas para fora, quando isso é o que menos importa”, disse.“Está vendo aquele animal ali? Ele tem a pele branca, come apenas ervas e dorme num celeiro com palha no chão. Você acha que ele tem cara de santo ou chegará algum dia a ser um verdadeiro mestre"?

Sofrimento Perspectivo

Passei toda a semana lendo sobre o martírio de Jesus nos evangelhos. Não foi bem uma escolha. Foi necessário por causa da oração que um grupo de senhoras deixou aqui em casa na segunda feira para ser lido por alguns dias: o terço da misericórdia. Ele é baseado nas visões diárias que Irmã Faustina teve de todo o processo que culminou na crucificação de Jesus e que resultou naquela famosa imagem em que é apresentado com os braços abertos e com os dois raios (um vermelho e outro branco azulado) que jorram do seu coração. Eles representam o sangue e a água de suas chagas, fonte de misericórdia para o mundo. Foi chocante ler isso tudo nos detalhes, Deus do céu. Triste pensar na solidão de Jesus na hora suprema (todos o abandonaram), no escárnio, nas injúrias, na humilhação, nos seus sofrimentos físicos e espirituais. Imaginei as sensações físicas de estar pendurado pelas mãos perfuradas e morrer lentamente, sufocado, depois de muitas horas de agonia (ele foi crucificado às nove da manhã e só morreu às três da tarde). A princípio eu chorava ao ler isso, depois passei a sentir vergonha, indignação, culpa. Foi interessante ver a diferença dos evangelhos, mesmo entre os que parecem contar a mesma história e, além disso, observar a visão espiritual de João, o amado. A partir das leituras e das orações, fiquei me perguntando sobre os males do mundo. Não deveríamos meditar apenas sobre a ressurreição? Depois de uma semana pensando nisso, ontem assisti uma parte da palestra do psicólogo, teólogo e filósofo ortodoxo Jean-Yves Leloup, na TV, assim, por acaso. Vou tentar anotar aqui o que ele disse para não esquecer. Ele falava sobre o mal, sobre os absurdos. Os que existem em nós e os que estão no mundo. Afirmou que tudo tem um propósito e que chega o tempo de encará-los. Encarar a nossa sombra, a de tudo que nos parece inaceitável, em nós. Ficar frente a frente com os absurdos do mundo. Nos dois casos, há o tempo de acolhê-los com a serenidade do Cristo, sem culpas. Não há como transmutar o mal sem reconhecê-lo, ficar frente a ele. Aceitar o absurdo é uma etapa de desenvolvimento psíquico e espiritual, a da compaixão. Só a compaixão amorosa pode nos fazer ver além do mal. Só assim saberemos que tudo tem uma razão, mesmo que ela não nos pareça óbvia. Isso significa aceitar o sofrimento com uma visão perspectiva. Ele relembrou uma música de Vivaldi*: a que ele traduz o sofrimento perspectivo de Maria, a mãe de Jesus a partir de um poema medieval. Ela sofria em pé. Lembrou, também, a visão do cordeiro do Apocalipse, o que foi decepado, mas permaneceu sobre as quatro patas. Bem, por um breve instante, tudo me pareceu menos sórdido e mais coerente. Hoje vou me concentrar nas descrições de Lucas, às três horas da tarde, hora em que, segundo Irmã Faustina, devemos pedir pela misericórdia e pela compaixão em nós e por todos nós.
...
*Vivaldi, Stabat Mater.

quarta-feira, novembro 09, 2005

Caminhos

Podia-me dizer por favor, qual é o caminho para sair daqui? - Perguntou Alice.
- Isso depende muito do lugar para onde você quer ir. - disse o Gato.
- Não me importa muito onde... - disse Alice.
- Nesse caso não importa por onde você vá. - Disse o Gato.
- ...contanto que eu chegue a algum lugar. - acrescentou Alice como explicação.
- É claro que isso acontecerá. - Disse o Gato - desde que você ande durante algum tempo.( Lewis Carroll)


Paul Auster descreve, em Cidade de Vidro, as sensações de um homem ao andar pela cidade. Perambular pelo labirinto de caminhos que fazia sentir-se perdido. Não apenas na cidade, mas também dentro de si mesmo. Andar pela cidade era abandonar-se ao movimento das ruas. Reduzir seu olhar à observação e, neste ato, fugir da obrigação de pensar. Andar pela cidade produzia nele um saudável vazio interior, uma certa paz. Pois, afinal, o mundo estava fora dele e se apresentava de forma rápida pelas ruas, o que não permitia fixar-se em nada. Ele não era o mundo. Ao caminhar sem rumo, todos os lugares se tornavam iguais e, assim, já não importava mais onde estava. Pois ele não estava em parte alguma. E isto, afinal, era o que pedia às coisas: não estar em lugar nenhum.

sábado, novembro 05, 2005

Raul Gil

Raul Gil é a via da iluminação. Era minha certeza recorrente dos sábados. Dos finais de semana, quando meu corpo doía mais do que o costume, quando minha mente trabalhava, mesmo sem permissão. Sábado era dia de parar (e se paro, vejo; e se vejo, sinto; e se sinto, sofro). Então, concentrava-me no Mestre Raul, nas suas piadas sem-graça, no seu humor pastelão que lembrava os programas domingueiros do Chacrinha com gosto de infância no bairro. Emocionei-me com os anjos que cantavam, que traziam histórias sofridas e o sonho da arte. Lá havia uma menina que só interpretava sucessos da MPB. E o fazia com tanta maestria e seriedade que dava gosto de ver. Havia outra que, de maneira bastante original, mesclava a música clássica com arranjos de rock. Havia, também, uma dupla que cantava músicas de raiz, cujo vocalista, de quinze anos, tinha a voz mais bonita e grave do que a do Tião Carreiro e Zé Ramalho juntos. E havia um menino, Mateus, que me fez chorar ao ouví-lo cantar Planeta Água. Parecia uma oração. Ele tinha uma voz doce, emocionada, e os olhos mais tristes que já tive a oportunidade de ver numa criança.

Por momentos, cheguei a bendizer a Record e a Igreja Universal do Reino de Deus.
O Programa não acontece mais a partir de hoje. Pena.

sexta-feira, novembro 04, 2005

João de Barro

Alice Capel

Sentada no banco junto à fonte,
solitária e introspectiva,
observo os pássaros que gorjeiam alegres .

O João-de-barro pousa no teto de sua casinha.
Minutos depois vejo-o entrando e saindo,
levantando as asas
num gesto de louvor e contentamento.

Tive vontade de entrar naquela morada,
tão pequenina e aconchegante.
Ah..se pudesse... estaria ali, quietinha, em silêncio,
Assim ,talvez , ficaria incólume do frio que reside
em minha alma.

É impossível manter este anseio infantil...quimérico.

Volto-me para outras paragens
Revejo os pássaros alegres...ágeis...barulhentos.
Eles vão e vem.....voam e repousam num festim
sem igual.

Em pares, voam muito alto e alguns retornam.

Há aquele que se distanciou do bando, sem par,
solitário e triste, tenta alcançar os companheiros
que se foram...para sempre.

quarta-feira, novembro 02, 2005

Morrer, transformar-se.

Quando já, aos trinta e poucos anos, decidi que queria viver de maneira mais intensa, comecei a buscar meios de fazer isso. Não foi bem uma atitude consciente. Uma inquietação interna obrigava-me a isso. Algo deveria ser feito. E, de alguma maneira, eu já sabia de tudo. Resolvi que enfrentaria todos os desafios de auto conhecimento. Sem os tais medos do espelho. De fato, não gostei de tudo que vi. Mas os reflexos, às vezes ilusórios, às vezes fiéis, abriram portas. Dos espelhos que eram meios de reflexão, dos que eram prisões de auto-imagem e precisavam ser destruídos. No auge da experiência, eu temia enlouquecer. Tudo parecia fora de controle. Não sem motivos internos, externamente eu me perdia. Quantas vezes, ao dirigir, perdi a noção de onde estava. Perdi, também, alguns documentos. E um sonho recorrente, um em que aparecia em uma praia deserta diante de uma enorme onda, evoluiu. Desta vez, eu me atirava ao mar. Freqüentei rodas de terapia e conheci muitas pessoas. Houve os anos de compartilhar as experiências. Houve o instante de abandoná-las. Chegou o tempo de estar só. Medo. Este foi o primeiro portal a ser transposto. Mas viriam outros muito mais difíceis e desafiadores. Ainda nesta atitude, revejo minha disposição interna para a transformação. Para a morte. E percebo que muitas capas foram retiradas. Por um lado, há a imensa dor das perdas. Por outro, uma sensação indescritível de liberdade interna. Para celebrar o processo e a aceitação da agonia vou cortar o cabelo e descobrir a nuca.


“Não dormes sob os ciprestes,
Pois não há sono no mundo.
..............................................
O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem o teu ser profundo.

Vem a noite, que é a morte,
E a sombra acabou sem ser.
Vais na noite só recorte,
Iguais a ti sem querer.

Mas na estalagem do Assombro
Tiram-te os anjos a capa:
Segues sem capa no ombro,
Com o pouco que te tapa.

Então, Arcanjos da Estrada
Despem-te e deixam-te nu,
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só teu corpo, que és tu.

Por fim, na funda caverna,
Os deuses despem-te mais.
Teu corpo cessa, alma externa,
Mas vês que são seus iguais.
. .............................................

A sombra das tuas vestes
Ficou entre nós na Sorte.
Não estás morto entre os ciprestes.
..............................................
Neófito, não há morte”.
(Iniciação. Fernando Pessoa)

segunda-feira, outubro 17, 2005

Releitura

Então, Almitra disse: Fala-nos do amor.
E ele ergueu a fronte e olhou para a multidão,
e um silêncio caiu sobre todos, e com uma voz forte, disse:

Quando o amor vos chamar, segui-o,
Embora seus caminhos sejam agrestes e escarpados;
E quando ele vos envolver com suas asas, cedei-lhe,
Embora a espada oculta na sua plumagem possa ferir-vos;
E quando ele vos falar, acreditai nele,
Embora sua voz possa despedaçar vossos sonhos
Como o vento devasta o jardim.
Pois, da mesma forma que o amor vos coroa,
Assim ele vos crucifica.
E da mesma forma que contribui para vosso crescimento,
Trabalha para vossa poda.
E da mesma forma que alcança vossa altura
E acaricia vossos ramos mais tenros que se embalam ao sol,
Assim também desce até vossas raízes
E as sacode no seu apego à terra.
Como feixes de trigo, ele vos aperta junto ao seu coração.
Ele vos debulha para expor vossa nudez.
Ele vos peneira para libertar-vos das palhas.
Ele vos mói até a extrema brancura.
Ele vos amassa até que vos torneis maleáveis.
Então, ele vos leva ao fogo sagrado e vos transforma
No pão místico do banquete divino.
Todas essas coisas, o amor operará em vós
Para que conheçais os segredos de vossos corações
E, com esse conhecimento,
Vos convertais no pão místico do banquete divino.
Todavia, se no vosso temor,
Procurardes somente a paz do amor e o gozo do amor,
Então seria melhor para vós que cobrísseis vossa nudez
E abandonásseis a eira do amor,
Para entrar num mundo sem estações,
Onde rireis, mas não todos os vossos risos,
E chorareis, mas não todas as vossas lágrimas.
O amor nada dá senão de si próprio
E nada recebe senão de si próprio.
O amor não possui, nem se deixa possuir.
Porque o amor basta-se a si mesmo.
Quando um de vós ama, que não diga:Deus está no meu coração,
Mas que diga antes: Eu estou no coração de Deus.
E não imagineis que possais dirigir o curso do amor,
Pois o amor, se vos achar dignos,
Determinará ele próprio o vosso curso.
O amor não tem outro desejo
Senão o de atingir a sua plenitude.
Se, contudo, amardes e precisardes ter desejos,
Sejam estes os vossos desejos:
De vos diluirdes no amor e serdes como um riacho
Que canta sua melodia para a noite;
De conhecerdes a dor de sentir ternura demasiada;
De ficardes feridos por vossa própria compreensão do amor
E de sangrardes de boa vontade e com alegria;
De acordardes na aurora com o coração alado
E agradecerdes por um novo dia de amor;
De descansardes ao meio-dia
E meditardes sobre o êxtase do amor;
De voltardes para casa à noite com gratidão;
E de adormecerdes com uma prece no coração para o bem-amado,
E nos lábios uma canção de bem-aventurança.
(Gibran)

domingo, outubro 09, 2005

Uma vida, nos detalhes.

Ao estudar métodos experimentais em história, conheci a importância dos detalhes. A reflexão veio do Dr. Morelli, um médico que desenvolveu formas de indicar a autoria de obras de arte e identificar falsificações. Descobriu que imitadores traíam-se nos pormenores: na forma como representavam as orelhas, as unhas, os dedos das mãos. Em síntese, no que era aparentemente desimportante no todo da obra. Isso, de fato, é significativo. Um aprendizado para a vida. Pessoas se traem nos detalhes. Quem nunca viveu a experiência de relacionar-se com alguém educado, mas que trata mal um garçon num restaurante? Fotografe. Guarde no seu caderninho preto os indícios de uma personalidade dissimulada. De outro lado, preste atenção em outras particularidades. Nas suas. Nos sorrisos, nos cumprimentos, nas palavras ditas de forma apressada. Já participei de bancas decisórias em que membros foram excluídos porque não responderam a uma pergunta, vestiam-se de modo inadequado ou não cumprimentaram alguém no corredor. E não houve meios de evitar isso. Uma vida profissional, uma relação, muita coisa pode estar em jogo nos atos mínimos. Como li na epígrafe de A.Warburg, escrita por um historiador italiano: Deus está no particular.

segunda-feira, outubro 03, 2005

Luis N

Um homem maduro, inteligente. Um escriba talentoso. Escreve microcontos. Seu texto, mínimo, está de acordo com sua filosofia de vida: despida de acessórios. Um homem que disfarça o refinamento interior com a ética da essencialidade. Um homem simples, de alma complexa. Nem é preciso dizer que esta é uma declaração pública de afeto. Na semana em que faz anos. Que das areias do tempo escoado das mãos possam cair sementes férteis para alimentar todos os seus sonhos. Os de hoje. Os de sempre.

domingo, outubro 02, 2005

Ensinar, aprender...

Às voltas com um programa sobre ensino, leio isto:

Tinha dez anos apenas, gostava de folgar, não gostava de aprender. Aprender é muito aborrecido!...Minha mãe fazia-me estudar, e, tanto como o estudo aborrecia-me a atitude. Obrigado a estar sentado, com o livro nas mãos, a um canto ou à mesa, dava ao diabo o livro, a mesa e a cadeira. Usava de um recurso que recomendo aos preguiçosos: deixava os olhos na página e abria a porta à imaginação. Corria a apanhar as flechas dos foguetes, a ouvir os realejos, a bailar com as meninas, a cantar, a rir, a espancar de mentira ou de brincadeira, como for mais claro!...

(Umas Férias, Machado de Assis, 1869)

quinta-feira, setembro 29, 2005

Ínfimo

(p/ Manoel de Barros)

Cansaço na alma.
Alguém diz que o escolhi.
Esboço um sorriso.
Algo entre a ironia
e a aceitação.

Elogiam minha fluência.
Quando é mais importante
o que calo.

Banho-me no sol
branco do meu peito.
Percebo o mundo
com a visão
e a audição
diminuídas.

Sem alimentos
na memória
do que foi
ou será
observo os caminhos
forrados pelas acácias
da primavera.

Acaricio o gato Nino,
converso com
orquídeas e violetas.

Vivo a vida das formigas.

domingo, setembro 18, 2005

Godot: até quando?

Em torno de uma árvore sem folhas, em algum lugar da estrada, dois homens esperam. Por Godot. Enquanto isso, elaboram estratégias de sobrevivência. Para passar o tempo. Para suportarem o tédio, a angústia da existência. São patéticos. Vivem por essa esperança que os aprisiona e os imobiliza. Desejam o desfecho que não ocorre nunca. Godot é a promessa da vida que não chega. E, neste absurdo, imaginam a morte. Mas Godot virá, e, assim, mais um dia se passa. Indefinidamente. Num tempo circular, eterno. Com o passar das horas eles perguntam: o que fazer? Até quando inventaremos estratégias para existir? Mas Godot, argumentam, Godot, que não se sabe ao certo quem é e nem quando se fará presente, virá. Godot os dará uma cama quente, acolhedora. Nesta interminável espera, os dois homens tentam se comunicar. Entretanto, nem as estratégias da fala, da razão, dos gestos emocionais ou mesmo dos silêncios, inevitáveis, parecem resolver o lento passar das horas infindas. Até que confundam as referências temporais e se mantenham na incerteza, entre o sonho e a realidade. Mas, Godot, Godot há de resolver todas as questões. Pois Godot estará com eles. Virá como a noite certa. Em algum momento, em algum tempo.

_______________
Esperando Godot, montado pelo Grupo Máskara, do Núcleo de Pesquisas da UFG. Em cartaz no Martim Cererê, até o dia 29/09. Como uma metáfora da condição humana, a peça é um marco da dramaturgia ocidental, no ano em que se comemora a obra de Samuel Beckett e o teatro do absurdo. Trágico. Cômico. Irreverente. Inquietante. Lindo. Imperdível.

quinta-feira, setembro 15, 2005

Menopausa Precoce

Anteontem me permiti estar com um amigo. Não nos víamos há tempos. Fiquei triste. Ao ouví-lo contar sobre as coisas que o animam percebi que não sou mais a mesma. Onde estariam meus velhos desejos? Saí do encontro com uma incômoda sensação de nada. Se há uma morte interna, não identifico o que sobrevive e se recompõe.

sábado, setembro 10, 2005

Megasena

Uma raquete, algumas almofadas, uma caixa de lenços, um beco solitário, florais, o psicanalista transpessoal, duas sessões de respiração holotrópica, teatro, cinema, shiatsu toda semana, tai-chi sempre, alguns velhos amigos e um passaporte para entrar num grupo de gente pirada que vê naves espaciais no céu de Paraúna.

Momento Mágico

Caminhava apressada em meio aos blocos monumentais da universidade. Havia recebido más notícias por telefone. Seu corpo tremia. No pátio do corredor central de um dos prédios, estendidos no chão, alguns objetos à venda. Olhou-os rapidamente e, surpresa, viu livros que estivera procurando por muito tempo. Com capas de couro surrado, fechados por fivelas ornadas em cobre, eles continham símbolos cabalísticos e alguns desenhos. Folheou as páginas envelhecidas com pequenos textos manuscritos encabeçados por iluminuras. De dentro deles, a memória de outros tempos. Deixou-se levar por segundos. Saído de algum lugar, um homem apareceu. Trocaram poucas palavras. O suficiente para que soubesse que era um mago. Em seus olhos profundos podia ler, em silêncio: vê, há mais coisas por trás do que é aparente.

terça-feira, setembro 06, 2005

Post Terapêutico

Já me fiz inúmeras perguntas a respeito da manutenção deste blog (na verdade, não tantas assim, pois economizo racionalizações excessivas, sempre inúteis). De todas, uma certeza. Este espaço serve para que eu escreva em momentos como este: de extrema tensão. Desviar a mente por alguns minutos. Fazê-la submeter-se à construção do texto num supremo esforço. Mesmo que seja em torno de uma idéia acessória nada a ver. Disciplinar a mente é uma tarefa tranqüilizadora. Se a deixamos correr solta, ela cria espectros animados que somatizam tremores, dores, indisposições inscritas na alma e no corpo. Continuo a escrever até controlar a ansiedade. Na maior parte das vezes dá certo. Já me fiz inúmeras perguntas a respeito da manutenção deste blog (na verdade, não tantas assim, pois economizo racionalizações excessivas, sempre inúteis). De todas, uma certeza. Este espaço serve para que eu escreva em momentos como este: de extrema tensão. Desviar a mente por alguns minutos. Fazê-la submeter-se à construção do texto num supremo esforço. Mesmo que seja em torno de uma idéia acessória nada a ver. Disciplinar a mente é uma tarefa tranqüilizadora. Se a deixamos correr solta, ela cria espectros animados que somatizam tremores, dores, indisposições inscritas na alma e no corpo. Continuo a escrever até controlar a ansiedade. Na maior parte das vezes dá certo. Já me fiz inúmeras perguntas a respeito da manutenção deste blog (na verdade, não tantas assim, pois economizo racionalizações excessivas, sempre inúteis). De todas, uma certeza. Este espaço serve para que eu escreva em momentos como este: de extrema tensão. Desviar a mente por alguns minutos. Fazê-la submeter-se à construção do texto num supremo esforço. Mesmo que seja em torno de uma idéia acessória nada a ver. Disciplinar a mente é uma tarefa tranqüilizadora. Se a deixamos correr solta, ela cria espectros animados que somatizam tremores, dores, indisposições inscritas na alma e no corpo. Continuo a escrever até controlar a ansiedade. Na maior parte das vezes dá certo.

domingo, agosto 28, 2005

O Anjo Nosso de Todo Dia

Os Anjos tornaram-se tão discretos!
O meu já nem me faz perguntas.

...Não te movas se, de repente,
o Anjo se senta à tua mesa;
Alisa, com vagar, os breves vincos
que a toalha faz, debaixo do teu pão.
Convida-o para a modesta refeição,
Que também ele lhe saboreie o gosto,
E possa levar aos lábios impolutos
Um pobre copo de uso cotidiano.

(Rilke)

sexta-feira, agosto 26, 2005

O Livro

Foi depois de alguns meses que minha filha havia nascido que o encontrei. De uma forma inesperada. Vi o livro na estante de minha mãe. As páginas já um pouco gastas pelo tempo não apagavam a imagem estampada na capa: um belo rosto masculino envolto em chamas. Abandonei-o na cabeceira da cama. Por dias. Meses. Não me lembro. Um dia, deitei-me bastante cansada. Minha filha já estava com alguns meses e eu ainda lidava com a maternidade de uma maneira extrema, dolorida, por razões que não consigo explicar. Além de tudo, sentia-me mal por olhar no espelho e constatar que me encontrava bastante acima do peso. Uma bobagem que adquiria dimensões inimaginadas pelo fato de ter sido gorda na infância e parte da adolescência. Neste dia, abri o livro aleatoriamente e fiquei surpresa com o texto. O homem envolto em chamas ensinava-me como emagrecer. Achei a coincidência interessante e o ensinamento bastante implausível. Guardei-o novamente. O fato se repetiu em outra ocasião. E outra. E mais outra. Com assuntos variados. Dos mais simples e corriqueiros, aos mais complexos e difíceis. Os textos não eram textos. Eram respostas. Fiquei curiosa a respeito do autor. Investiguei sua biografia, cruzei dados, e, por fontes variadas, outras informações foram chegando a mim, num tempo pré-google. Leio este livro até hoje. Depois de muitos anos, suas mensagens são sempre novas. Tempos houve em que ele foi a coisa mais real e cheia de sentido que eu possuía, a companhia mais importante nos momentos difíceis e solitários. Já o fechei com vergonha depois de alguns puxões de orelha, já o guardei com o coração cheio de gratidão amorosa. Tenho duas versões do mesmo livro. A que não carrego comigo, deixo, também, na estante. Que ele queira ser encontrado por minha filha, em algum tempo.

quarta-feira, agosto 10, 2005

Eu não sou eu...

Eu sou este ser que caminha ao meu lado
E que não vejo,
Que às vezes chego a visitar
E outras vezes esqueço;
Que mantém a calma e o silêncio
Quando falo,
E amavelmente me perdoa
Quando sinto ódio;
Que anda por lugares
Que não conheço,
E que ficará de pé
Quando eu morrer.

(Juan Ramon Jiménez)

Contraste

Ontem à noite,
(depois de mais um dia difícil)
no auditório do Tribunal do Júri da Universidade
(eu, que ando sentada no banco dos réus há tempos)
vestida com uma beca de homenageada,
(eu, que ando despida de tudo)
recebi flores como uma celebração aos fins e recomeços,
(eu, a que coleciona carros de funerárias que vê todos os dias)
e uma placa de metal, com o seguinte texto gravado:

À Profa. Heloísa:

"Se não morre aquele que planta uma árvore e nem morre aquele que escreve um livro, com mais razões não deve morrer um educador. Pois, ele semeia nas almas e escreve nos espíritos." B. Brecht

Pós Graduação Latu Sensu História Cultural – Turma 2004/02
Homenagem dos Formandos
Goiânia, 09 de agosto de 2005.

domingo, agosto 07, 2005

Reverberação

Lya Luft

O destino trama os dias
e desfaz o sonho: demarca
meus contornos, partes
disso que sou e serei.

Quem sabe desejei demais:
milagres não me bastaram,
mas quando eu quis ser rainha
fui simplesmente humana.

A voz da vida insiste,
chama para o que salva
ou desatina:
nem sempre a entendi.

Palavras buscam sentido
para o que fiz, falhei,
conquistei e perdi
- ou que me abandonou
nalguma esquina.

(Talvez eu precisasse é dos silêncios.)

O amor nasce da calma

Amar um ser é ter o espírito apaziguado, a fim de permitir-lhe ser o que é no momento em que está.
(dos padres do deserto, segundo Jean-Yves Leloup)

terça-feira, julho 26, 2005

Maria Clara e a Samaritana

Perguntei à Maria Clara, minha filha de treze anos, se não iria estudar para a prova do dia seguinte. Ela disse que não. Não era necessário. Era de religião. Mas, e o conteúdo? Estava todo em dia? Questionei. Ela ironizou dizendo que as provas de religião costumavam apresentar a seguinte pergunta:
Joãozinho espancou seu irmão Zezinho. Você acha que ele agiu corretamente? Justifique sua resposta. Não consegui deixar de rir, até que ela, empolgada com minha reação, considerasse convicta: Religião consegue ser mais inútil do que artes. Pois bem, ferrou-se. Tirou uma nota baixa na prova, o que a deixou bastante chateada. Perto do seu 9.0(nove) em matemática está lá, um 6.5(seis e meio) em religião, destoando das notas restantes. A professora resolveu deixar de lado as análises do mau comportamento de Joãozinho e pediu uma reflexão sobre a História da Samaritana. Ela não tinha lido a história inútil e, portanto, suas interpretações também não foram de muita utilidade. Vai, portanto, para ela, parte da análise realizada pelo teólogo ortodoxo, PHD em Psicologia, o ex-dominicano Jean-Yves Leloup, que vou tentar traduzir em simples palavras. Leloup traduziu a história do Evangelho de São João, diretamente do grego. Nela, o nome de Jesus é mantido como Ieshua.

Todos conhecem a história (façamos de conta que sim):

Em viagem com os discípulos, Ieshua chega à uma cidade da Samaria, Sicar. Ieshua era judeu e os judeus não se davam com o povo da Samaria. Mas Ieshua estava lá de passagem e, enquanto seus discípulos foram arranjar algum alimento, ele chegou até um poço, uma fonte, para tomar água. Pois bem, lá estava uma bela mulher, com seu cântaro, que havia ido ao local para buscar água (vale dizer que este poço era um lugar importante para a cidade. Diziam que ali, o patriarca Jacó havia realizado, uma vez, o milagre de fazer as águas do fundo chegarem até a superfície. Portanto, era uma fonte sagrada, um local especial). Ieshua chegou ali na 6a. hora, o que quer dizer, ao meio dia (hora em que não há sombras e o sol está a pino). Pediu água para a mulher. Ele diz a ela: Dá-me de beber! A Samaritana lhe responde, com um misto de curiosidade e certa indignação: Como é que um judeu pede água a mim, uma Samaritana? Ieshua lhe responde de forma direta:
Eu lhe ofereci o dom de Deus que diz: Dá-me de beber! Se conhecesses esse dom, tu é que me pedirias e não terias mais sede, porque eu te daria a Água Viva. Ou seja, em outras palavras, Jesus falou como os goianos agro-boys costumam fazer, sempre que insultados: Filhinha, você não sabe o que está fazendo e nem com quem está falando!

Desejo de riqueza material: a primeira etapa da busca

Leloup compreende esta história como o arquétipo da busca e do desejo, representado pela mulher, nossa psique. Dito de outro modo, todos nós, temos interiormente desejos, buscamos alguma coisa e neste início, a história nos diz que a primeira etapa de nossa busca para saciar nossa insatisfação interior, está nas coisas do mundo. A Samaritana levou seu cântaro para buscar água, a água material, a que se pode ver e sentir com nossos sentidos físicos. Assim, achamos que nossos desejos podem ser realizados com livros, cds do Nightwish, coturnos e outros sonhos de consumo, entende? E que nossa felicidade depende disso. Todavia, Ieshua é claro com a mulher, quando lhe diz:
Quem bebe da água desse poço terá sede de novo, mas aquele que bebe da água que eu lhe darei, não mais terá sede. A água que eu lhe darei se transformará nele numa fonte, num jorro de vida eterna!
Isso significa que não adianta buscar a satisfação do nosso desejo interno nas coisas materiais. Elas não vão nos saciar. E quem escolhe este caminho está sempre querendo mais, mais, e mais (Marcos Valério ganhando dinheiro e favorecimentos do PT, por exemplo). Esta é a primeira etapa de nossa busca, a mais primária. Mas, a história não termina aqui. A Samaritana, então, pede à Jesus: Dá-me dessa água para que eu não tenha mais sede e não tenha que vir aqui para tirar água do poço. No que Jesus responde: Vá buscar teu marido e volte aqui.

Desejo de riqueza afetiva: a segunda etapa da busca

Aqui Jesus faz com que a Samaritana entre em outra etapa de seu desejo, para que ela possa compreender sua incompletude. Porque talvez não encontremos a felicidade nas coisas materiais, mas talvez possamos procurá-la nas riquezas afetivas, na riqueza das relações. Conheço muita gente que vive assim, atrás de um amor, de alguém que vá resolver todos os seus problemas. E a Samaritana parece compreender a dificuldade de satisfação deste desejo, quando responde a ele: Não tenho marido.
Ieshua, então, dá-lhe um show particular de vidência e elogia-lhe a sinceridade. Afirma-lhe que sim, o homem que estava ao seu lado não era, de fato, seu marido, e que ela já tinha tido cinco outros no passado. Ela estava só e não conhecia a unidade e o apaziguamento dos seus desejos por esta via, portanto. Com este diálogo, Jesus estava ensinando a ela sobre o seu desejo e a sua busca, percebe? Mas a história não termina aí. A Samaritana se impressiona com a resposta de Jesus e afirma:
Rabi, vejo que és um vidente, um profeta. Nossos pais adoraram sobre essa montanha e vós dizeis que é em Jerusalém que é necessário adorar (pois ele era um judeu). Ao que Ieshua responde:
Mulher, crê em mim. Dia virá que não será nem sobre essa montanha, nem em Jerusalém que vós adorareis o Pai. Vós adorais quem não conheceis (...) É chegada a hora, e nós estamos nela, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai no espírito e na verdade, no Sopro e na Vigilância, porque são estes adoradores que o Pai procura.
A mulher lhe diz: Eu sei que quando o Messias chegar ele nos explicará tudo.
E Ieshua lhe revela: Sou Eu. Sou Eu que te falo. Eu sou aquele que É.


Desejo de riqueza religiosa: a terceira etapa da busca.

Pois bem, aqui está a terceira etapa da busca. Já que não resolvemos nossa busca de felicidade nas coisas materiais e nem no nível afetivo, alguns de nós buscam a satisfação na religião. E aí a Samaritana faz uma pergunta importante ao Mestre. Onde deve estar nossa religião? (nas Montanhas da Samaria ou em Jerusalém?). Qual é a melhor religião? E a resposta de Jesus vai mostrar que este é mais um engano. Nós nos decepcionamos na medida das nossas expectativas, diz Leloup: Pedimos muito às coisas, pedimos muito às pessoas, pedimos muito às religiões. Quer dizer, pedimos o infinito às coisas finitas. Não pode dar um bom resultado, não acha? (Lembra da sua professora de catequese? Pois é). Assim, devemos saber o que adorar (no sentido antigo – onde orientar nosso desejo para a fonte de todo o Ser). Jesus diz: não é em nenhum desses lugares, nem nas coisas, nem nas pessoas e nem na religião. E ele dá a resposta da qual é o exemplo vivo: devemos orientar nosso ser para o nosso Sopro, entrar no nosso Sopro e permanecermos vigilantes, pois aí está o fio que sobe até a fonte.

Eu Sou Aquele que É

Depois que Jesus lhe disse isso, a Samaritana deixou o seu cântaro e correu para a cidade anunciando às pessoas que havia encontrado um homem que lhe disse tudo que ela era. Que ela era, que Eu Sou. Jesus disse, Eu Sou aquele que é. Quando ele dizia Eu Sou, ele não queria dizer que era um bambambam não, ele queria dizer: Deus em mim É. O Sopro em mim habita. Habita em mim, e em todos. Basta que eu oriente o meu desejo para Ele e passe a viver vigilante, a partir dele. Quando estou consciente disso posso deixar o meu cântaro (como a Samaritana), pois a fonte está em mim. Não preciso mais pedir apaziguamento às coisas externas, quer sejam elas materiais, afetivas ou religiosas, pois carrego em mim a própria fonte. E isto me autoriza a dizer isso às pessoas como fez a Samaritana. Assim, posso retornar às coisas materiais, pois as possuo, mas elas não me possuem (ver música da Pitty), posso ir às minhas relações afetivas e vivenciar qualquer religião, mas serei livre em relação a elas. Meditar sobre a história da Samaritana é, portanto, compreender o itinerário de nossos desejos, os que nos guiarão por toda a nossa vida, o que pode ser bastante útil, viu coisinha?

Referências deste post:

História da Samaritana: Evangelho Segundo João, 4: 1-30.
Jean-Yves Leloup: LELOUP, Jean-Yves. Caminhos da Realização. Petrópolis, Vozes, 1999.
Marcos Valério e o PT: Ah, deixa pra lá.
Música da Pitty: Só de Passagem.

domingo, julho 24, 2005

Pra Rua Me Levar

Não vou viver como alguém que só espera um novo amor. Há outras coisas no caminho onde eu vou. Às vezes ando só, trocando passos com a solidão. Momentos que são meus, e que não abro mão. Já sei olhar o rio por onde a vida passa, sem me precipitar e nem perder a hora. Escuto no silêncio que há em mim e basta. Vou deixar a rua me levar, ver a cidade se acender. A lua vai banhar esse lugar e eu vou lembrar você. É, mas tenho ainda muita coisa pra arrumar...promessas que me fiz e que ainda não cumpri. Palavras me aguardam o tempo exato pra falar. Coisas minhas, talvez você nem queira ouvir. Já sei olhar o rio por onde a vida passa, sem me precipitar e nem perder a hora. Escuto no silêncio que há em mim e basta. Outro tempo começou pra mim agora.
(Ana Carolina / Totonho Villeroy)

terça-feira, julho 19, 2005

Dica de Férias

Imaginem um homem, cuja vida está no piloto automático, que, ao andar na calçada em uma manhã qualquer, depara-se com um fragmento de construção gigantesco que cai a um passo em sua frente. Mais um passo apenas e ele estaria morto sob a pedra que despencou do alto. Este é o ato detonador de um impulso. O homem vira a esquina e resolve que seria outro. Como se houvesse, de fato, morrido, assume outra identidade, abandonando a vida anterior, profissão, família e todo o resto. Temos assim o início de uma história dentro de outra história. Como braços da trama principal, as histórias se sucedem, se interpenetram, se sobrepõem umas às outras no livro que estou lendo. Chato, né? Ficaria com preguiça de ler se me contassem isso. Ledo engano. Todas as histórias do meu livro são interessantes. Especialmente porque as personagens (e isto parece ser uma característica do autor) são muito bem construídas, e estão sempre às voltas com aquelas perguntas filosófico – existenciais para as quais nunca temos uma resposta satisfatória, mesmo que nos seja imprescindível fazê-las. Vivendo no limite. Elas estão sempre assim. Em alguns casos, sofreram perdas irreparáveis ou estão seriamente doentes, ou melhor, foram submetidas a situações que as levaram a explorar as questões mais complicadas da vida. Então é mais um daqueles livros sem ação e com intensos e longos monólogos interiores? Errado. Há uma dosagem exata e encantadora entre a ação e o pensar reflexivo. Acrescente-se a isso, uma narrativa viva, uma trama original e uma pincelada de ironia e humor sutis. E, ainda, para finalizar, ensinamentos de como aliviar-se, utilizando-se da literatura e da escrita como meios de sistematizar perguntas sem resposta. Ah, em tempo: a encadernação do livro é bárbara - uma edição bem cuidada com uma ante-capa macia de papel canelado azul - daqueles que a gente fica acariciando antes de abrir. Não me perguntem o que acontece com o homem sem identidade do início deste parágrafo. No momento, por uma série de acontecimentos, ele está preso num abrigo subterrâneo, e o escritor está pensando o que fazer para tirá-lo de lá de uma maneira coerente e não usual. Se souberem o final não me contem rápido. Agora vou ler devagar, para degustar cada linha. O nome do livro é Noite do Oráculo e o autor é Paul Auster. Uma amiga contou-me que, na Flip, o autor disse que é apenas uma história de amor. Mas o livro é muito mais que isso.

quinta-feira, julho 14, 2005

ainda quando

esquece aquela espera
amar é infindo
e além do tempo
ancora o seu destino:
amar é isto.
esquece aquela dor, esquece
aquela sina de ser e ser ainda
entre o verde , amiga, a vida e o vinho.
durar o quê e quando? e quanto?
além da chama clara de uma vela?
agora é sempre, vê. e nada escolhe
ser eterno, essa miragem.
nem dura a palavra mais
do que o desejo de dizê-la
e nem morte menos
do que o medo de esquecê-la.

(Carlos Rodrigues Brandão)

quarta-feira, julho 13, 2005

Falta de Assunto

Li um pouco o filósofo Paul Ricoeur nestes últimos meses. Encantou-me a importância que dá ao passado. O que não existe a não ser na reconfiguração do presente. Como historiadora, tenho uma nobre missão: recriar o tempo e dar-lhe significados com um discurso de autoridade. Ok. O passado está em nós e é importante. Mas o futuro também está. Somos, da mesma maneira, aquilo que esperamos dos dias que se seguirão. E sob esta perspectiva, os videntes são tão importantes quanto os historiadores. (Re)significam nosso futuro. Tempo que, como o passado, também não existe. Paul Ricoeur fala do tempo fenomenológico: o eterno presente, onde tudo acontece e é efetivamente definido. Assim, todo mundo devia ler Paul Ricoeur. Para viver e relacionar-se com as pessoas no aqui e agora, quando os milagres cotidianos acontecem e nem são percebidos. Passado e futuro absolutos são grandes e pesados grilhões. Impedem-nos de observar a beleza do caminho. Deveríamos viver como se fossemos doentes terminais: valorizando cada segundo, com um passado e um futuro displicentes, não determinantes. E os que nos amam deveriam se relacionar conosco assim, também: aceitando-nos, com a história pregressa que nos construiu e nosso futuro incerto. Não o condeno ao passado que aqui te trouxe e nem o considero uma pessoa-investimento. Encontro-o na eternidade deste instante. Acho que seríamos mais felizes se assim pensássemos.

segunda-feira, julho 11, 2005

Sonho

Viajo na noite fria
de um túnel de pedra.
Uma quietude mórbida
e sufocante dorme
sob a pirâmide.
Na trilha subterrânea
conto os passos
em que piso no chão de vidro.
Na terra vejo corpos
que se contorcem nus
e nadam na lama.
Seguro uma criança
e salto por entre pedras móveis.
Eu a protejo e sinto-me acompanhada.
Desvio-me de paredes úmidas.

Caminho cega em direção à luz.

(Desperto-me antes de alcançar a saída)

sexta-feira, julho 08, 2005

Respire, as ondas vêm e vão.

Ouço sempre a frase do título quando estou ansiosa. Minha filha costuma dizê-la, ao mesmo tempo em que me endireita a coluna. De fato, penso que a grande solução da vida é respirar. Permitir que o fluxo entre e saia sem obstáculos, o que não é nada fácil. Pude compreender melhor o poder da atitude quando me submeti a uma seção de respiração holotrópica. Era uma loucura proposta pelo meu terapeuta transpessoal. A sensação é a mesma no caso do uso de LSD. Ele me explicava, piorando as coisas, visto que nunca usei drogas de nenhuma espécie. As mãos podem se enrolar. Eu arregalava os olhos. Os pés também. Você pode ter visões. Misericórida. Eu já havia desistido, quando ele me apresentou a solução mágica para resolver qualquer efeito colateral da atividade: respire. Simplesmente continue respirando. E lá fui eu, acompanhada por alguém que não conhecia (pois precisamos ser cuidados por outra pessoa durante o ato), um garoto adolescente que parecia muito mais corajoso do que eu. Tadinho. Ele teve que se levantar inúmeras vezes para me levar ao banheiro. Minha seção de respiração holotrópica transformou-se numa vontade ininterrupta de fazer xixi sobre o mundo. Meu terapeuta disse que foi uma profunda limpeza. Achei melhor acreditar. E, é claro, fiz várias outras seções até perder totalmente o medo e experimentar um contato mais íntimo comigo mesma. Acho que foi útil como estratégia de auto-conhecimento. Além de me ensinar o princípio básico da respiração. Ansioso? Respire. Triste? Respire. Nervoso? Respire. E por aí vai. Sigo assim, todos os dias, até não sei quando, tentando manter o ritmo da respiração. Como as ondas, que, inexoravelmente, vêm e vão.
Como no poema do Luís.
As ondas vêm e vão

inspiro.
atento à sensação
produzida nas narinas
pelo ar que entra.
expiro,
atento à sensação
produzida nas narinas
pelo ar que sai.
inspiro.
a partir do ventre,
a centímetros do umbigo,
o tórax enche.
expiro.
a partir do ventre,
centímetros abaixo do umbigo,
o tórax esvazia-se.
inspiro, expiro.
respiro.
deixo-me respirar,
nada mais.
Mas, de repente, forço-me a respirar,
e inspiro e expiro com aparato,
descontrolado,
o equilíbrio perdido.
recordo-me então
que as ondas vêm e vão,
e deixo-me ir, deixo-me ir.
inspiro, expiro.
respiro.
deixo-me respirar.
não estou ansioso, nem calmo,
nem triste, nem feliz.
respiro, nada mais.
e as ondas vêm e vão.
(Luís Ene)
Obrigada, querido. Adorei.

sexta-feira, junho 17, 2005

A Via de Chuang Tzu

Refugio-me na leitura de Chuang Tzu, em sua sabedoria do século II a.C., quando estou desanimada com tantos problemas:

A Metamorfose

Quatro homens entraram em discussão.
Cada qual falou:
"Quem souber ter o vazio como cabeça,
A vida como espinha dorsal
E a morte como cauda,
Este será meu amigo!"

Nisto todos se entreolharam,
viram que concordaram,
Riram alto
E ficaram amigos.

Depois um caiu doente
E o outro foi visitá-lo.
"Grande é o criador", dizia o doente,
"Que me fez como sou!
(...)
meu corpo é o caos,
mas minha mente está em ordem".

Seu amigo perguntou-lhe:
"Você está desanimado?"

"Qual nada! Por que haveria de estar?
Se Ele me separa e faz um galo
No meu ombro esquerdo,
Eu anunciarei a madrugada.
Se Ele fizer um arco
Do meu ombro direito
Procurarei um pato assado.
Se meu assento se transformar em rodas
E se meu espírito vier a ser um cavalo
Prepararei minha própria carroça
E andarei por aí."

Há um tempo de juntar
E um tempo de separar.
Aquele que entender
Este curso dos acontecimentos
Toma cada novo estado
Em sua devida hora.

Sem nenhuma tristeza nem alegria.
(...)
A natureza é mais forte do que todas as cordas e elos.
Sempre foi assim.
Onde está uma razão
Para desanimar?


Quando estou com vontade de "matar alguém", leio este:

O Galo de Briga

Chi Hsing Tzu era treinador de galos de briga
Para o Rei Hsuan.
Estava treinando uma bela ave.
Sempre perguntava o Rei se a ave
Estava pronta para a briga.
"Ainda não", dizia o treinador.
"Ele é fogoso. É pronto para atiçar briga
Com qualquer ave. É vaidoso e confiante
Na sua própria força".

Depois de dez dias, respondeu novamente:
"Ainda não. Eriça-se todo
Quando ouve outra ave grasnar."
Depois de mais dez dias:
"Ainda não. Ainda está
Com aquele ar irado,
E eriça as pernas."

Depois de dez dias
Disse o treinador:
"Agora ele está pronto.
Quando outra ave grasna,
Seu olho nem pisca.
Fica imóvel
Como um galo de madeira.
É um brigador amadurecido.
Outras aves olharão para ele de relance
E fugirão."


E, por fim, leio este outro quando acho que as coisas estão insuportáveis e começo ansiosamente a estabelecer prazos para o fim do meu suplício:

A Necessidade da Vitória

Quando um arqueiro atira sem alvo nem mira
Estará com toda a sua habilidade.
Se atira para ganhar uma fivela de metal
Já fica nervoso.
Se atira por um prêmio em ouro
Fica cego
Ou vê dois alvos-
Está louco!

Sua habilidade não mudou.
Mas o prêmio cria nele divisões.
Preocupa-se.
Pensa mais em ganhar
Do que em atirar-
E a necessidade de vencer
Esgota-lhe a força.

quinta-feira, junho 09, 2005

Felizes Demais

Aprendo muitas coisas com minha filha MC no alto de seus treze anos. Com uma índole identificada com a personalidade gótico-metal (felizmente mais nightwish do que iron maiden) ela despreza pessoas "felizes". Faço-lhe a pergunta óbvia-idiota, no seu estilo comunicacional: - Ow, tipo, ser feliz não é bom?. Ela me explica fazendo caras e bocas e traduzo assim, o que consigo compreender: ser "feliz", é ser deslumbrado. Para as "pessoas felizes" tudo é lindo, cor de rosa, maravilhoso. "Pessoas felizes" tendem a uma visão superficial da vida e por esse motivo, tornam-se desprezíveis.

quinta-feira, junho 02, 2005

Constatação

Li hoje, com atenção:

Não sou substituível para quem me ama. Sou substituível para quem me usa.

quarta-feira, junho 01, 2005

Nino

A esta hora Nino deve estar na mesa de cirurgia para uma orquiectomia. Tomará anestesia geral. O fato de estar aborrecida com ele depois que fez xixi no meu livro do Kundera (o dos amores que se tornaram não só risíveis, mas malcheirosos e impossíveis), não significa que não lhe desejo todo o bem do mundo. Ele anda desanimado, com um problema resistente de pele e, a partir de hoje, se tornará definitivamente estéril. Que o deus dos gatos possa me perdoar por minha parcela de culpa nisso tudo. Respire, Heloisa, respire.

terça-feira, maio 31, 2005

Estou Apaixonada

Por Walter Salles. É verdade. Assisti a um programa (Arte com Sérgio Brito), em que o diretor foi convidado a contar sua trajetória profissional. Isso foi feito com maestria pelo entrevistador e, a partir dele, pude saber que Walter Salles começou sua vida artística como fotógrafo. Depois, aventurou-se nos perfis e documentários, para só então, criar e dirigir em cinema de ficção. Está muito magrinho (terei que dar um jeito nisso), mas contou, com detalhes, os perfis e documentários que mais lhe agradaram fazer. Dessa maneira, pude compreender não só aqueles olhos, que sabem chorar e sorrir ao mesmo tempo, mas o seu olhar sobre as coisas. E ele fala com os olhos, já prestaram atenção? Começou contando do perfil de Jorge Luis Borges que realizou há algum tempo. Impressionou-o Borges ser herdeiro de cinco gerações de homens cegos, alguém que ao perder gradativamente a visão, conseguiu ver o mundo de uma maneira tão poética e imaginativa. Foram mostrados trechos dessa entrevista, realizada dois anos antes da morte do escritor. Emocionante. Ele também nos falou de Nick Lauda (escreve assim? ah, sei lá), aquele corredor de fórmula 1 que quase morreu em um acidente, lembram? Pois é, Nick Lauda narrou com detalhes como lutou por três dias para sobreviver. Especialmente depois que recebeu a extrema – unção de um "padre", que mal lhe dirigiu a palavra. Embirrou depois daí e resolveu que não ia morrer, naquela hora não. De fato, sobreviveu milagrosamente para contar a história. Depois disso, Walter Salles começou a falar dos documentários. Um que me fez chorar, foi o que contava a vida de (peraí, esse cara eu preciso escrever o nome direito, um segundo)...voltei: Frank Krajcberg, o poeta dos vestígios. O cara é polonês e depois de viver todos os horrores da Segunda Guerra (sua mãe foi brutalmente assassinada, esteve em campos de batalha, sentiu na pele os absurdos do stalinismo) e passar fome na França, desacreditou na espécie humana (e tem gente que acredita na espécie humana, humpft). Veio para o Brasil e passou a criar esculturas de material destruído da natureza. Ouví-lo contar como a natureza o resgatou é algo que salta os olhos. Putz. Houve um momento, depois de fugir da presença humana refugiando-se nas matas, em que tinha vontade de dançar com as árvores! Walter Salles (será que estou escrevendo certo o seu nome? não importa tá tão chique assim com W e dois eles...) revela que esse contato deu a tônica dos seus personagens de ficção: indivíduos que estavam mal interiormente, mas que olharam no retrovisor e resolveram se recriar, reinventar a própria vida. Krajcberg recebeu carta de uma presidiária e mostrou ao Salles. Este ato deu-lhe a idéia chave de Central do Brasil. Quantas cartas não chegam ao seu destino, afinal? Refletiu com Sérgio Brito. Concluiu que o cinema é uma carta, que também é endereçada e que assume os riscos da viagem até o destinatário. O programa acabou aí (snif), mas continua sei lá em que dia e em que horário (se alguém descobrir, por favor, informe). No próximo, ele vai contar dos filmes: Abril Despedaçado (maravilhoso), Diários da Motocicleta (que não vi ainda, que vergonha...) e de todos os outros. Será que ele vai falar se é casado? Opção sexual? O que pensa fazer nos próximos anos? Telefone para contato? ...............?................? ...................?....................?

Acho que preciso ver mais TV.

segunda-feira, maio 30, 2005

Márcia Sacerdote

Maria Clara e eu estávamos rindo de nossa empregada. Em três meses de trabalho ela já conseguiu muitas coisas: quebrou a máquina de lavar roupa, desmontou definitivamente o porta papel higiênico do banheiro, estragou a torneira da cozinha, inutilizou o purificador de água e o fogão de seis bocas, só funciona com duas. Queimou três roupas no ferro de passar, quebrou a coroa da escultura de N.Sra. da Assunção e alguns objetos decorativos. Os pratos de cerâmica cinza estão todos pintados de lasca branca e não há mais um conjunto inteiro de copos. MC fica indignada:

Mãe, você deve brigar com ela!!!!
Já lhe pedi para tomar cuidado, MC.
Exija que ela desligue aquele rádio na estação da Igreja Universal.
Deixa pra lá, filha. É só fechar a porta da cozinha.
Qualquer dia vamos chegar aqui e ela vai ter colocado fogo em tudo.
Não seja intolerante. Vejamos pelo lado bom, ela tem virtudes.
É, justiça seja feita: ela cozinha bem...e
(pensa)
Cozinha bem
(pensa mais um pouco)
Ela cozinha bem...
M. pra sua cozinha. Se ela estragar algum dos meus discos de metal, juro que vou fazer ela engolir aquele rádio. Ela vai ser obrigada a ouvir trash metal o dia todo, prometo.
Acho que prefiro as músicas da Igreja Universal.
Então tome uma atitude.
Calma, filha....as ondas vêm e vão. Respire...

domingo, maio 29, 2005

Redenção

Tomou-lhe a graciosa criança dos braços. E foi como um instante de redenção. Segurar o filho do novo casamento dele tinha algo de recomeço. Num segundo, cenas animaram-se com profusão de sentimentos: o namoro, o casamento naquele templo egípcio, os gestos cotidianos únicos, o cheiro, a agressividade, a dureza de suas mãos e de seu abraço, o sentimento de incompletude e insuficiência inúteis a qualquer esforço, as dores da separação. Teria sido perdoada, enfim? Devolveu-lhe a criança agitada em seu colo e conseguiu sorrir, com genuína alegria.

quarta-feira, maio 25, 2005

Mudança

Já que não dá para alterar o resto, mudei o template. Os comentários? Hum, ficaram guardados no meu coração.

terça-feira, maio 24, 2005

Sentido

Dizem que o que todos procuramos é um sentido para a vida. Não penso que seja assim. Penso que o que estamos procurando é uma experiência de estar vivos, de modo que nossas experiências de vida, no plano puramente físico, tenham ressonância no interior do nosso ser e da nossa realidade mais íntima, de modo que realmente sintamos o enlevo de estar vivos.

(Joseph Campbell)

sexta-feira, maio 20, 2005

Fênix



Acho que há dois anos, mais intensamente no último, que não passo dois dias sem ver um carro de funerária. Na última semana, algumas vezes por mais de uma vez no mesmo dia, uma van branca, com uma bela imagem azul de ave, onde se pode ler: fênix.

Memórias




Quando tinha 8, 9 anos morava numa casa com jardim num bairro popular da cidade. Dormia num quarto com minha avó. Ainda posso vê-la sentada fazendo crochê ou rezando um terço (ela se vangloriava de rezar três terços por dia). Era uma mulher altiva e inteligente.

Lembro-me bem dos seus pés: sempre muito limpos e perfumados. Eu os sentia quando, assombrada por terrores noturnos, pulava para a sua cama nas madrugadas. Dormi abraçada a eles em muitas noites (ela nunca me negou um canto e isso sempre me surpreendeu). À essa época, já repetia a mesma história com o descontrole da memória afetada pela arteriosclerose: foi traída pela irmã e casou-se com um homem que não amava.

Guardava uma mala de fotos antigas roubada por um gatuno que pudemos ver, em vulto, pela janela. Tinha um baú com um prego saliente que me rasgou o joelho numa outra vez. Depois de muitos anos, quando eu já era adulta e a encontrava, sem me reconhecer, ela sorria e dizia: - Filha, você é tão boa...

Quando morreu, duas cenas tornaram-se, também, inesquecíveis: as escaras de suas costas sendo limpas, com carinho, pela minha mãe e minha tia e, por último, os seus pés, amarelos, pendurados no lençol através do qual um homem desconhecido carregava, sem cuidado, o seu corpo sem vida.

terça-feira, maio 17, 2005

Instante



Debruçada na sacada do quarto, esperava-o com certa ansiedade. Vigiava os carros e pedestres adivinhando neles sua aproximação. Lá dentro, tudo pronto: frutas e castanhas no balcão da cozinha, duas taças, um vinho na geladeira, jogo de luzes e sombras. Como seria? Não gostava de imaginar. Não atendeu aos seus telefonemas durante o dia, menos o primeiro: o que confirmava o recebimento das flores pela manhã, com um convite: Janta comigo hoje? Indicava o local e a hora. Foram dois anos de assédio cuidadoso e paciente. Sim, admirava-lhe a persistência, refletia enquanto olhava-se no espelho minutos antes. Preparou-se com esmero: um banho de imersão com ervas aromáticas, lingerie nova, vestido de tecido leve com alguma transparência. A despeito de todas as intenções expressas em gestos e olhares, nunca haviam se tocado. Como seria? Não queria imaginar. Sabia que o sonho matava o instante. Ouviu a campainha e correu para a porta. Era ele. Não conseguira vê-lo pela sacada, mas observou com agrado que estava perfumado e com os cabelos úmidos. Cumprimentaram-se cordialmente com certo constrangimento. Numa fração de segundo, uma sensação perturbadora: viu-se como professora nos olhos dele. O quanto havia lhe ensinado? O que seriam agora? Fizeram comentários banais sobre o ambiente antes que ele se colocasse ao seu lado para dizer que estava tudo bem. Antes que a tocasse levemente com a mão e, num lance de surpreendente fúria, a tomasse pela cintura e a beijasse sofregamente. Dois anos por este dia. Fizeram o amor do desejo e da espera. Lavaram os pratos juntos, mantiveram-se abraçados frente à sacada que revelava a noite clara sobre prédios altos. Conversaram amenidades próprias aos momentos sem promessas. E nunca mais se encontraram novamente.

domingo, maio 08, 2005

A elas, o meu amor

Para minha mãe e minha filha que hoje faz aniversário, todo o meu amor.

sexta-feira, maio 06, 2005

Olhem só!

Tão lindinho!

Essencialidades



Experimento a sensação de liberdade ao aprender uma difícil lição: posso perfeitamente viver sem muitas coisas, focada no essencial.

quarta-feira, maio 04, 2005

Amizade



Quando adolescentes ouvimos certos chavões sobre a amizade. Concordamos sem saber, de fato, o que significa. Até estarmos num buraco escuro e vislumbrarmos uma mão amiga. Sim, amigos, os de verdade, são seres especiais. Mais que irmãos, às vezes. São preciosidades, dádivas divinas, devidamente colocadas em nossas vidas para nos ajudar. Tenho uma amiga assim. Uma pessoa que está comigo quando o último vai embora e apaga a luz (aconteceu várias vezes). Que me faz rir quando só tenho vontade de chorar. Que preenche os meus dias com leves e saborosas abobrinhas (literalmente) e coisas completamente banais nos momentos em que a vida está amarga, pesada e séria. Quando não quero pensar, ela está sempre lá, ocupando-me o tempo com pequenas coisas do dia a dia: reclamando dos namorados (sempre mais jovens e diáfanos do que ela), fazendo comida, contando piadas sem-graça (é muito difícil me fazer rir), dizendo coisas absolutamente sem importância. Ela é quase dez anos mais velha que eu, mas parece o contrário. Outro dia, entramos num teatro e eu a abracei. Ela observou: - Vão pensar que somos algum "caso". Respondi, rindo, que não me importava nem um pouco. No que ela emendou: - Você seria muito velha para mim.
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Nisso já se vão mais de vinte anos. Não! Deletem este parágrafo. Eu não conseguiria expressar o valor desta amizade nem em longos dez mil posts.

sábado, abril 30, 2005

Desafetos



Outro dia disse à Maria Clara que minha mãe não me ensinou coisas que julgo necessário saber. Uma importante: não precisamos ser adorados por todos. Seremos sim, se adotarmos a detestável atitude mosca morta: a das pessoas sem opinião ou qualquer tipo de iniciativa, insetos pousados sem vida em coisas e pessoas nem sempre agradáveis. Esta posição, aparentemente as salva de críticas e de desafetos, afinal, elas sobrevivem nesse estilo de morte-vida. Até que alguém lhes dá uma boa e merecida dose de inseticida e elas caem sem a força vital que desperdiçaram. Viver significa agir. E saiba, haverá opositores. E nem é preciso que a ação seja "boa". Basta que ela exista para que incomode, abale estruturas e esteja numa vitrine sujeita a pedradas. Então, o que fazer nessa hora, mãe? MC pergunta. Continue o caminho, se nele houver coerência e convicção, respondo. Quanto aos que gritam? Bah, dê de ombros e siga em frente. Você se sentirá viva e livre.

sexta-feira, abril 15, 2005

Pequenas Grandes Coisas



Quem passou por um grande sofrimento, por um tempo longo, entenderá o que quero dizer. O valor de um gesto ou mesmo de uma manifestação da natureza. Nessa conjuntura, são infinitamente grandes as pequenas coisas.
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P.S. Escrevo este post de forma entrecortada. Tomando um chá. Trazido pela Dona Jô. A da limpeza. Da minha erva favorita. Colhida no quintal de sua casa.

domingo, abril 03, 2005

A Lenda das Areias
Vindo desde as suas origens em distantes montanhas, após passar por inúmeros acidentes de terreno nas regiões campestres, um rio finalmente alcançou as areias do deserto. E do mesmo modo como vencera as outras barreiras, o rio tentou atravessar esta de agora, mas se deu conta de que suas águas mal tocavam a areia nela desapareciam.
Estava convicto, no entanto, de que fazia parte de seu destino cruzar aquele deserto, embora não visse como fazê-lo. Então uma voz misteriosa, saída do próprio deserto arenoso, sussurrou:- O vento cruza o deserto, o mesmo pode fazer o rio.
O rio objetou estar se arremessando contra as areias, sendo assim absorvido, enquanto o vento podia voar, conseguindo dessa maneira atravessar o deserto.
- Arrojando-se com violência como vem fazendo não conseguirá cruzá-lo. Assim desaparecerá ou se transformará num pântano. Deve permitir que o vento o conduza a seu destino.
- Mas como isso pode acontecer?
- Consentindo em ser absorvido pelo vento.
Tal sugestão não era aceitável para o rio. Afinal de contas, ele nunca fora absorvido até então. Não desejava perder a sua individualidade. Uma vez a tendo perdido, como se poderá saber se a recuperaria mais tarde?
- O vento desempenha essa função - disseram as areias. - eleva a água, a conduz sobre o deserto e depois a deixa cair. Caindo em forma de chuva, a água novamente se converte num rio.
- Como posso saber que isto é verdade?
- Pois assim é, e se não acredita, não se tornará outra coisa senão um pântano, e ainda isto levaria muitos e muitos anos; e um pântano não é certamente a mesma coisa que um rio.
- Mas não posso continuar sendo o mesmo rio que sou agora?
- Você não pode, em caso algum, permanecer assim - retrucou a voz. - Sua parte essencial é transportada e forma um rio novamente. Você é chamado assim ainda hoje por não saber qual a sua parte essencial.
Ao ouvir tais palavras, certos ecos começaram a ressoar nos pensamentos mais profundos do rio. Recordou vagamente um estágio em que ele, ou uma parte dele, não sabia qual, fora transportada nos braços do vento. Também se lembrou, ou lhe pareceu assim, de que era isso o que devia fazer, conquanto não fosse a coisa mais natural.
E o rio elevou então seus vapores nos acolhedores braços do vento, que suave e facilmente o conduziu para o alto, e para bem longe, deixando-o cair suavemente tão logo tinham alcançado o topo de uma montanha, milhas e milhas mais distante. E porque tivera suas dúvidas, o rio pode recordar e gravar com mais firmeza em sua mente os detalhes daquela sua experiência. E ponderou: - Sim, agora conheço a minha verdadeira identidade.
O rio estava fazendo seu aprendizado, mas as areias sussurraram:
- Nós temos o conhecimento porque vemos essa operação ocorrer dia após dia, e porque nós, as areias, nos estendemos por todo o caminho que vai desde as margens do rio até a montanha.
E é por isso que se diz que o caminho pelo qual o Rio da Vida tem de seguir em sua travessia está escrito nas Areias.
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Do livro "O Buscador da Verdade" de Idries Shah

sexta-feira, março 25, 2005

Cura

Era saudável, mas ia sempre ao médico. E não era preciso um grande motivo para fazê-lo. Um pouco resfriado, uma dor de cabeça ocasional, uma leve suspeita. Naquele ato, buscava alívio. Descrevia seus pequenos males cheios de subjetividade sentindo-se acolhido num encontro com Deus. Alguém que, pela sua infinita superioridade e misericórdia, poderia curá-lo de sua dor de alma.

quinta-feira, março 24, 2005

Decreto aos planetas.

O Sol obedece à minha sintaxe.
(Velemir Khlebnikov)
Conto todos os meus segredos, digo tudo o que penso.


Há muita falta de cuidado e respeito na afirmação acima. Qualquer um de nós guarda consigo os seus segredos. Há espaços sagrados em nossa alma. Por outro lado, quantos problemas poderiam ter sido evitados se mantivéssemos silêncio pelos pensamentos fugazes, momentos de impaciência, dúvidas de instantes. Não temos todas as soluções e nem compreendemos tudo com a limitada racionalidade humana. Nesse sentido, dizer tudo o que pensamos é, no mínimo, imprudente. No momento seguinte poderemos pensar diferente e, aí, pode ser tarde. Leva-se apenas um minuto para provocar um longo estrago. Penso, sem dizer tudo, portanto, que é saudável manter os próprios segredos, manter-se em silêncio e respeitar as zonas proibidas do outro. Mais do que uma atitude de respeito, é um ato de amor e confiança nos mistérios insondáveis da natureza humana.

quarta-feira, março 16, 2005

A disciplina do amor


Outro dia comentei com alguém que lia a Lygia Fagundes Telles há muito tempo. Lembro-me bem dos contos curtos em que ela narrava histórias que envolviam a disciplina do amor. O amor que está em nós, independente do objeto amado, o amor que não depende de barganhas (as que são fruto de nossas carências, obsessões ou caprichos), o que é paciente, forma um substrato de sentimento que está no fundo de toda experiência aparente de conflito e é incondicional. Este amor resiste ao abandono, aos obstáculos, às indisposições gerais que envolvem todos os relacionamentos. Pela minha longa experiência em amar (não riam, é verdade), penso que estamos mais preparados para este amor quanto mais inocentes somos. Como fomos um dia (quando amamos pela primeira vez) e, paradoxalmente, como voltamos a ser, a cada dia que vivemos e envelhecemos. Para amar com disciplina é preciso acreditar no amor. Desvestí-lo das mágoas e desilusões que encaramos pela vida, considerar com tranqüilidade os “nãos” que recebemos, os sonhos de amor não realizados. Amar com disciplina é amar, apesar de. A maturidade nos prepara para sermos novamente crianças no amor.

sexta-feira, março 11, 2005

Mar Adentro

A morte não é terrível. Passa-se ao sono e o mundo desaparece – se tudo correr bem. Terrível pode ser a dor dos moribundos, terrível também a perda sofrida pelos vivos quando morre uma pessoa amada. Não há cura conhecida (...). O que as pessoas podem fazer para assegurar umas às outras maneiras fáceis e pacíficas de morrer ainda está por ser descoberto. (Norbert Elias. A Solidão dos Moribundos)

Estávamos na livraria do shopping antes do início do filme, quando recebi um telefonema. Era um amigo avisando-me da morte de uma colega de faculdade. Aconteceu no domingo passado e nem fiquei sabendo. Soube que lutava contra o câncer já há algum tempo, mas que estava bem, confiante que seria curada (era muito religiosa). Entrei no cinema com o coração dilacerado. A velha ferida do peito sangrando todas as dores. Mar adentro. No filme, Ramón Sampedro luta para morrer e minha amiga fazia exatamente o contrário. Nas últimas semanas chorava muito e dizia que queria viver. Queria estar ao lado dos dois filhos pequenos. Ela não tinha quarenta anos. Disseram-me que suplicou até o último instante. A despeito deste contraste, saí do filme com a sensação de que todos tinham razão: os que lutavam pela liberdade individual frente ao poder de um estado laico, os que imbuídos de sua ética existencialista queriam deliberar sobre o seu próprio direito de viver ou morrer, os que defendiam a vida a qualquer custo (mesmo que em migalhas, a vida que vale por um instante de beleza e sentido). O filme é belo e muito tocante, do início ao fim. Saí com os olhos vermelhos da sala. Algumas identificações foram imediatas: a vontade de morrer diante de algumas prisões cotidianas, a necessidade de aprender a chorar sorrindo quando a vida não nos dá outras opções e, afinal, a certeza que por pior que sejam nossas correntes (voluntárias ou impostas), nosso espírito é livre. O que alivia um pouco a dor e a aceitação sobre tudo que não podemos mudar.

terça-feira, março 08, 2005

O tempo não cura as feridas. Alivia a dor e embaça a memória.
(Do filme A Excêntrica Família de Antônia)
Dia Internacional da Mulher


Hoje é dia internacional da mulher. Tenho uma grande preguiça do discurso feminista. E há momentos que sinto que sou mais homem do que muitos homens. E fico com vontade de aprender a cozinhar e fazer tudo o que as feministas abominam quando estou apaixonada. E é isso o que eu tinha a dizer a respeito.

segunda-feira, março 07, 2005

Vingança Privada


Nino e eu temos muitas afinidades. Uma importante: gostamos de banheiro limpo. Isso significa que preciso trocar sua bandeja higiênica várias vezes ao dia. Eu as forro com jornal. Não raro ele fica esperando que eu estenda as fotos e reportagens, para que complete, de imediato, o serviço em cima. Hoje, coincidentemente, foi na Vilma Martins. Mas, não faltará oportunidade de diversão para muitas escolhas conscientes.

domingo, março 06, 2005

Nóvoa

Hoje assisti a uma palestra do Vice Reitor da Universidade de Lisboa, o professor António Nóvoa. Ele foi um grande inspirador de minhas reflexões teóricas e práticas a respeito do trabalho de recolher histórias de vida na formação de professores. Gostei muito do que ele disse (estava quase sem voz, afinal, quem resiste ao calor brasileiro?). Começou a fala com um quadro de A. Breton e outros: O Cadáver Esquisito (ou elegante). Técnica surrealista que envolvia várias mãos na composição de uma obra e que inspirou um antigo blog que possuíamos, o blog esquisito, escrito com o Luís (Ene) e o Alysson Ferrari (J. Kern). Já comecei a gostar daí. Depois, disse algumas pérolas, como:

Diz-me como ensinas e dir-te-ei quem és.
Ou
Diz-me quem és e dir-te-ei como ensinas.

Professor é como médico: um erro pode ser fatal, trágico na vida de um indivíduo.

A memorização é necessária para o processo criativo (sempre pensei nisso, afinal, Mnemósina é mãe das musas).

Falou também de programas curriculares como programas alquímicos e em transposições deliberativas, uma substituição ao termo transposição didática, influenciado por J.Habermas e que envolve conhecimento teórico, prático, profissional e pessoal (inclua-se aí os valores e a ética).

E terminou com a Teoria do Caos, lembrando que as asas de uma borboleta podem influenciar um tufão no outro lado do mundo, além do que é preciso sonhar. E que os sonhos têm que acontecer, pois tudo que é necessário, é possível.

Dei a ele o meu livro e ele me disse que temos grandes afinidades. Ele também fez história e se doutorou em educação e é apaixonado por teatro (amanhã apresento essa disciplina por lá).

Agora só falta ele me convidar para dar uma palestra em Lisboa.Vocês sabem, adoro Fernando Pessoa (rs).

sexta-feira, março 04, 2005

solidão

quando estava na Índia, um terapeuta budista leu um desenho que eu havia feito. disse que os traços mostravam que eu era uma pessoa solitária (ok. ainda não sei direito como ele conseguiu descobrir isso naqueles rabiscos toscos e despreocupados). senti alívio quando afirmou, logo em seguida, que o desenho, entretanto, não apresentava psicopatias(menos mal). de fato, penso que sou uma pessoa que convive bem com a solidão. a começar pelo fato de que as atividades que mais aprecio na vida estão favorecidas pelo estar só: ler, estudar, escrever. o que não significa que não gosto de estar rodeada de pessoas (poucas, por vez, confesso). mas, há momentos em que sinto um peso negativo na solidão. quando estou alegre. nessas horas é muito, muito bom, ter pessoas para compartilhar.

quinta-feira, março 03, 2005

Alice Poliana da Silva


Se acreditar que é possível

viver sempre um grande amor

for ilusão, eu sou

a louca que crê

a tola que escolhe não ser

racional.



Se acreditar que o sempre não dura um só dia

mas sobrevive à revelia

da rotina , do tédio, do esquecimento da paixão

se isso for utopia, eu sou

a ingênua da rua,

Alice Poliana da Silva,

muito prazer.



Se tentar mudar a maré pro meu lado, pro seu lado, nosso barco

com eterno vento a favor,

se isso for fantasia, eu sou

o guizo do palhaço

que toca e avisa:

vem aí uma romântica

em estado terminal,

gastando um resto de vida com amar, crer, brigar e sonhar.

Essa, sou eu.

(Tatyana Badim)
Obrigada, Taty :)

terça-feira, março 01, 2005

Viver Distraído

Uma vez li uma crônica, acho que do Rubem Braga, sobre estar distraído (se não for dele, peço desculpas, estou com preguiça de procurar). Contava a história de um casal que ficava o tempo todo analisando a relação e que, por esse motivo, a despeito do amor que nutriam um pelo outro, acabaram se separando. Fico pensando que, de fato, é bastante útil viver distraído. É, sem pensar demais, analisar demais todas as coisas. Queremos sempre respostas, de preferência exatas. Estabelecemos prazos a todas as coisas: elas têm que acontecer até um determinado momento. Ditamos regras inflexíveis para os outros e para nós mesmos. E como perdemos tempo com titicas que não valem a pena: pequenas mágoas, irritações banais. Porque comigo tem que ser assim! Inflamos o peito e saímos por aí, armados com nossos valores, nossas leis morais, aplicando a espada do querubim a todas as situações. Quanta bobagem. Ontem uma aluna comentou que o seu marido nunca esquece todas as coisas que ela diz, mesmo de passagem. Ele se vangloria de ter “memória retentiva”. Enquanto ríamos da história, um outro soltou lá do fundo da sala: - Ah, filha, fala pro seu marido aí que tão importante como lembrar, é, talvez, esquecer.

segunda-feira, fevereiro 28, 2005

É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos,
as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros
e a luz impura,
até doer.
É urgente o amor,
é urgente permanecer.
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Eugénio de Andrade
(Diante da poesia, bem como de certas sensações, não há palavras).

quinta-feira, fevereiro 24, 2005

Momento Desespero

Pai Anderson de Oxum. Resolvo todos os seus problemas. Hoje abri este mail. Foi grave. Mas, o pior, o pior mesmo foi, em meio à toda correria de ontem, ter jogado na mega sena acumulada em 31 milhões. Não antes de ter comprado uma raspadinha. Premiada na primeira vez. R$ 0,50 centavos. A loteria corre hoje. Pensar que posso estar milionária e fico aqui, escrevendo neste blog.

quarta-feira, fevereiro 23, 2005

Disposição

Como explicar uma noite de sono que descansa, um despertar noturno com uma lua cheia iluminando o quarto e uma manhã clara de sol e céu azul sob a qual tudo parece possível (interrogação). Cara, Deus fez com que eu fosse professora, para saber que há coisas na vida que não se pode explicar.
Apelo

Mostre-me como você rodopia na dança espiral da dor dentro da dor. Como mantém a rígida e cansativa disciplina, mesmo quando sofre agressões e teme. Diga-me como é capaz de correr tantos riscos com a insegurança do hoje num exercício insano de entrega incondicional ao amanhã. Como consegue ficar à vontade com a maneira como as coisas são neste exato momento e também no seguinte e no seguinte. Conte-me como você desmorona quando esbarra nos muros. Lugares que não pode transpor apenas pela força da tua vontade. Como consegue ultrapassá-los sem esclarecimentos da tua razão. Mostre-me como se percebe na frágil condição humana, uma folha sem proteção ao vento. A condição que te esmaga, mas que o leva a lugares onde a terra debaixo de teus pés e um sol intenso fazem seu coração marcado ficar mais sábio, inteiro de novo e de novo, e de novo. Explique-me como cuida das coisas corriqueiras do dia a dia sem deixar que elas determinem quem você é. Como administra o ser que grita em você no teu silêncio no espelho. E como percebe que, mesmo que os desejos da alma tenham um preço muito alto, no final, fica tudo bem.

(Inspirado em Oriah)

terça-feira, fevereiro 22, 2005

Cidade de Goiás


Esquecer o tempo. Sentar num meio fio em frente à fonte do Chafariz da Boa Morte e espalhar gravetos com a cabeça entre os joelhos. Pensamentos soltos, longe. Deixar levar pela conversa leve dos amigos. Andar à toa, sem rumo. Deitar nas pedras do Rio Bacalhau e olhar o céu azul sob o sol morno das manhãs. Comer pastel de queijo, bolo de arroz e tomar suco de cajuzinho do campo na rodoviária. Experimentar os doces cristalizados da rua Cândido Penso. E à noite, à noite ver as estrelas no silêncio do outeiro da Igreja Santa Bárbara.

sábado, fevereiro 19, 2005

...

Depois que Dona Maria do Socorro do Livramento me abandonou para trabalhar com a vizinha em melhores condições, declaro, para os devidos fins pessoais e profissionais, que a partir de segunda feira próxima começará a trabalhar aqui em casa a Dona Márcia Maria Sacerdote. Evangélica. Ex do Sandes Júnior. Sem comentários.
Zueira

Dr. João é um homem prático, direto, simples. Eu o conheço há pelo menos dez anos e nunca trocamos mais do que algumas poucas palavras para falar de otites, amigdalites, antibióticos ou outras coisas do gênero alopático. Ele é o otorrino de minha filha. Nesta semana que passou eu o procurei. Por conta de um barulho constante no ouvido. Parecia haver um Focker 100 da TAM turbinado dentro da minha cabeça. Depois do exame clínico, ele me perguntou: - você levou um choque, o que foi? Neguei. Mas era verdade. Dr. João não é o tipo de desconhecido bom para confidências (e, depois, eu estava muito à flor da pele para falar com quem quer que fosse). Afirmei que a causa poderia ser física, desafiando-o. Ele riu e disse confiante que no meu caso não era. Receitou-me um remédio fitoterápico, e ainda emendou: - faça ioga, você pensa demais. Coloque a sua cabeça num nível superior e deixe o pau quebrar aqui em baixo.
Surpreendente.

quinta-feira, fevereiro 17, 2005

Identidade

Outro dia um aluno novato me perguntou, desculpando-se pela indiscrição, qual era meu estado civil. Disse-lhe que era solteira. Ponto final. Ele não pareceu acreditar. Problema dele. Adorei falar essa mentira. Se ele fosse um desconhecido de ocasião, seria bom também dizer que me chamo, sei lá...Dora. Há momentos assim, que gostaria de passar tudo a limpo e sair por aí, com um olhar inaugural sobre o mundo.

quarta-feira, fevereiro 16, 2005

Reinício

Pimeiro dia de aula do semestre. Entro na sala lotada e estão todos em silêncio. Calouros. Escrevo o nome da disciplina e o meu nome no quadro. O ambiente é desconhecido, quase hostil. Sento na mesa e finjo analisar papéis, enquanto aguardo mais alguns minutos para iniciar a primeira conversa. Tento disfarçar meu cansaço (o físico, o de alma). Faço um ar compenetrado e um esforço enorme para manter-me nesta seriedade pelo primeiro contato (mesmo quando vejo pela abertura de vidro no fundo da sala alunos antigos acenando para mim, enviando-me beijos ou fazendo macaquices). Apresento-me. Desfaço pré-conceitos em relação ao curso. Falo das oportunidades profissionais e das motivações internas para realizá-lo. Digo- lhes coisas que acredito e passo a acreditar nelas mais ainda (especialmente quando vejo tanta esperança e interesse naqueles olhos atentos). Ao final, o que, de fato, vale a pena: uma aluna aguarda ficar a sós comigo e confidencia-me:
- Professora, hoje você me deu forças para fazer qualquer coisa. Obrigada.
Volto pra casa com a mesma sensação. Revigorada.

segunda-feira, fevereiro 14, 2005

Aikido


Maria Clara e eu refletimos sobre as regras de luta inspiradas em Sun Tzu. Numa delas há uma grande ênfase à necessidade de conhecer o inimigo. Disse-lhe que não concordo. Pelo menos não inteiramente. Nem sempre isso é possível. Muitas vezes a luta é cega, o inimigo está à espreita e nos surpreende. Sabemos como podemos ser atingidos. Assim, podem acreditar, se formos muito mentais, a guerra será mental, se, ao contrário, formos emocionais demais, as batalhas serão travadas nesse nível. Ela argumenta que poderemos, então, conhecer as fragilidades do inimigo e fazer o mesmo. Todavia, explico-lhe que prefiro usar o princípio das lutas orientais do tipo aikido: esperar o ataque e trabalhar a defesa, utilizando a própria força do oponente. Quando o inimigo ataca ele revela a verdadeira face. Aí sim, dá pra bater (e que as armas sejam coerentes com a nossa natureza, sempre). Em todos os casos, vale muito mais conhecer-se, portanto.
_______________
Recebi, hoje, por e-mail:
Não use a força física no combate. Apenas defenda-se.
Use a força interior , o equilíbrio e sobretudo o auto controle .
Lute usando a energia da água e do ar. Está tudo na natureza.
Não use a força. Ao imprimir a força física no combate,
sua energia se vai.
Use sua energia interior para obter concentração.
A concentração e o controle te tornarão apto ao equilíbrio.
O equilíbrio te torna capaz de tomar decisões com sabedoria.
Não tome decisões sob conflito interno.
Busque o equilíbrio antes de decidir.
Sob conflito, pode decidir fazer o que não quer
e deixar de fazer o que seria sábio fazer.
Cada movimento a seu tempo e em seu tempo .
E isto se chama tai-chi-chuan.

sexta-feira, fevereiro 11, 2005

Previsões

-Diga-me se meus amigos vão morrer.
-Tudo é possível, meu jovem, pois o futuro, o futuro muda a todo instante.
...........................
(Instrução jedi de Yoda a Luke Skywalker em Star Wars - O Império Contra Ataca)

sábado, fevereiro 05, 2005

Agenda

Além das atividades permanentes (cuidar de uma filha, um gato, algumas plantas, uma casa sem ajudante e estar à frente de uma loja em crise financeira e todos os efeitos decorrentes disso), a partir de quinta recomeço: coordenação de dois cursos lato sensu (História Cultural – turmas 2004 e 2005), coordenação de um centro de pesquisa (Centro de Pesquisa em História, segundo ano, com projeto de mestrado em História em estudo), coordenação de dois projetos de pesquisa (Vida Privada e Cotidiano Doméstico em Goiás Tradicional com cinco estagiários sob orientação e Memória Institucional no prelo), aulas em três disciplinas (o que, talvez, eu faça melhor na vida): uma na especialização (História Cultural: entre Práticas e Representações), duas na graduação (Métodos e Técnicas de Pesquisa em História e a experimental Mito e Teatro) e cinco orientações com temáticas diferentes na Pós-Graduação. Há, ainda, alguns projetos editoriais a serem entregues até o final de março: coordenação de uma revista temática e artigo (Revista Fragmentos de Cultura), coordenação e elaboração de capítulo do livro História Cultural e Documento com um Instituto de Pesquisa de Goiânia, elaboração de um capítulo de livro sobre Identidade Cultural em parceria com a UNB (falarei sobre a elite goiana a partir de três gerações de mulheres escritoras da cidade de Goiás) e um artigo (e seminário) em que apresentarei os resultados de um ano contando e vivenciando mitos com os alunos da licenciatura (adoro esta experiência). Ainda em fevereiro será minha estréia como avaliadora de banca de mestrado (Ciências da Religião, trabalho de um psicanalista sobre o mito da queda do homem no Gênesis). Hum, acho que desta vez, exagerei. Mas tenham fé, vai dar tudo certo.
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P.S. Esqueci da atividade voluntária com os adultos na Paróquia N.Sra de Fátima nos finais de semana. Claro que vou.

quinta-feira, fevereiro 03, 2005

Diário de uma sobrevivente

Quatro dias. Nem acredito. O corpo ainda ressente os impactos da semana. Por tudo que fui obrigada a ouvir e digerir, ainda sinto os ouvidos, o estômago. Mas isso não importa. Quatro dias para estar sossegada, ler, ir ao cinema, estudar. Sem pressões ou obrigações de qualquer natureza. Descanso com o senso do dever cumprido. Adormeço a mente e o coração neste eterno agora. Deus! O paraíso é um estado de espírito.
Assuntos Escatológicos

Lendo revista no banheiro, reflito hoje sobre Kofi Annan e os destinos do mundo. Contemplo seus olhos generosos e surpreendo-me com suas observações sobre o peso das desigualdades sociais e os aspectos perversos das defesas identitárias das nações. A origem africana foi fundamental em sua formação, afirma. Com as sociedades tribais aprendeu a ouvir. Além disso, ressalta que uma de suas funções é a de, de vez em quando, conversar com o diabo. Acho que o compreendo. Profundamente.

quarta-feira, janeiro 26, 2005

Vontade de Potência

Da leitura de Antonin Artaud :

Uma obra de arte só é viva na medida em que comunica algo além de sua aparência. Uma sombra, que a duplica, ou seja, quando o artista é capaz de inscrever naquilo que ele molda o sopro de vida que o inspirou, como Deus que moldou o homem com o barro da terra e depois insuflou-lhe o sopro vital. O sopro é esse exercício de força criadora, a vontade de potência, que apreende aquilo que, do interior, se inscreve e se manifesta na exterioridade. Uma representação habitada por marcas de uma história, escrita com a própria carne. Quando deparamos com alguma obra de arte que carrega em si essa potência, ela nos atinge, nos perturba, nos encanta, nos transfigura. Não saímos dali como entramos, algo foi acrescentado. É o tempo privilegiado em que não apenas nos sentimos existir, mas onde passamos por uma experiência de recuperação material do ato de existir.

E, deste xeque mate:

“se falta enxofre à nossa vida, quer dizer, se falta uma magia constante, é porque nos apraz contemplar os nossos atos e nos perdemos em considerações sobre as formas sonhadas de nossos atos, ao invés de sermos impulsionados por eles, ou seja, falta à nossa vida força, energia, vibração, intensidade e estamos mergulhados no marasmo”.

Concluo:

Desse mal nunca serei acusada. Vivo externamente minhas interioridades.