segunda-feira, abril 20, 2009

Ofélia


Para os amores mortos e loucos, - aqueles que se auto-sacrificam e, envoltos em flores, ingenuidade e delicadeza se precipitam nas águas, - a fluidez de Ofélia de Elsinore, o emblema do sonho e da fragilidade em cada um de nós.




J.E.Millais, Ophelia, 1851.


Às vezes, quando vou por altas horas, quando
fujo através da noite, a este amor que reveste
de um tênue véu de névoa a face do meu sonho,
de lábios infantis que, uma e outra vez, murmuram
uma queixa, como a de alguém que se maltrata,
um murmúrio, afinal, que só tu poderias
compreender, fico a olhar os jardins solitários
que ornam a calma azul por onde vou passando.
***
E às vezes, paro e sonho à frente de um cipreste;
outras, invejo o ardor de um canteiro tristonho
alvos lírios claustrais que aromam e fulguram,
como fantásticos turíbulos de prata.
Outras, quando anda a lua entre as ruas sombrias
e as flores tomam o ar de votos funerários,
cada aléia é como um regato cintilando,
onde um Ofélia, de alva e imponderável veste
loira e fria, tombou, morta de amor e sonho.
***
Junto às grades hostis que os jardins enclausuram
e que, ao fulgor da luz, são de ouro, bronze ou prata,
descanso, muita vez, as mãos longas e frias.
E enquanto a lua evoca extáticos cenários
de paisagens do polo e torna em verde brando
todo o azul que lhe nimba a tristeza celeste,
das grades através, como através de um sonho
de prisioneiro, a cujo olhar se transfiguram
as visões do exterior, tenho a visão exata
da noite que convida às grandes nostalgias.
***
Eu sou o doce irmão dos jardins solitários,
que lhes conhece a dor, que os vê da sombra, olhando
pelo ermo e triste e verde olhar de algum cipreste...
Uns são feitos de tudo, enfim, que há no meu sonho.
E é por isso, talvez, que ora ardem e fulguram,
ora são tristes como esses vitrais de prata
onde Cristo ergue a Deus as mãos longas e frias.
***
Eu sou o doce irmão dos jardins solitários,
desses jardins que exalto, amo e celebro,
quando por horas mortas vou,
do amor que me reveste de amargura, fugindo,
ao longo do meu sonho.
***
E, ao longo do meu sonho, os jardins se enclausuram de lágrimas!
(Ah! sobre essas grades de prata quando virás pousar as mãos longas e frias?
Quando abrirás, sorrindo, os jardins solitários, tu que hás de amar-me um dia e que eu espero? Quando?)
***
GUIMARAENS, Eduardo. A divina quimera (1916)

2 comentários:

Anônimo disse...

maltrata, minha flor, maltrara...

Taty

Atena disse...

Querida,a imagem é tão forte, né não?

AMEI vocês por aqui ontem.:)