sexta-feira, outubro 18, 2013

Ventania

Ventania. Antônio Parreiras. 1888 / 150 x 100 m


No Mar do Tempo

Desde o princípio
escorro vísceras adentro.
Canto, faço silêncio,
viva me surpreendo.

Vela estreita me abriga
e pequena concha
              no mar do tempo

Corpo e alma
(pesam ainda)
nas asas do primeiro vento.
            ...
(Sônia Maria Santos)

domingo, agosto 04, 2013

Sherman, Untitled Film Still #48
Cindy Sherman. Utitled Film Still #48
Autotomia

Diante do perigo, a holotúria se divide em duas:
deixando uma sua metade ser devorada pelo mundo,
salvando-se com a outra metade.

Ela se bifurca subitamente em naufrágio e salvação,
em resgate e promessa, no que foi e no que será.

No centro do seu corpo irrompe um precipício
de duas bordas que se tornam estranhas uma à outra.

Sobre uma das bordas, a morte, sobre outra, a vida.
Aqui o desespero, ali a coragem.

Se há balança, nenhum prato pesa mais que o outro.
Se há justiça, ei-la aqui.

Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.
Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou.

Nós também sabemos nos dividir, é verdade.
Mas apenas em corpo e sussurros partidos.
Em corpo e poesia.

Aqui a garganta, do outro lado, o riso,
leve, logo abafado.

Aqui o coração pesado, ali o Não Morrer Demais,
três pequenas palavras que são as três plumas de um vôo.

O abismo não nos divide.
O abismo nos cerca.

...
(Wislawa Szymborska)

domingo, julho 28, 2013



Elogio dos Sonhos


Nos sonhos
eu pinto como Vermeer van Delft.

Falo grego fluente 
e não só com os vivos.

Dirijo um carro 
que me obedece.

Tenho talento,
escrevo grandes poemas.

Escuto vozes
não menos que os mais veneráveis santos.

Vocês se espantariam 
com minha performance ao piano.

Flutuo no ar como se deve 
isto é, sozinha.

Ao cair do telhado
desço de manso na relva.

Respiro sem problema 
debaixo d'água.

Não reclamo:
consegui descobrir a Atlântida.

Fico feliz de sempre poder acordar 
pouco antes de morrer.

Assim que começa a guerra 
me viro do melhor lado.

Sou, mas não tenho que ser 
filha da minha época.

Faz alguns anos 
vi dois sóis.

E anteontem um pinguim. 
Com toda a clareza.


...
(WISLAWA SZYMBORSKA)

quarta-feira, janeiro 16, 2013

Paradoxos da (Des)existência



Eu só ando por dentro de mim; se fui em outro lugar foi pra me ver. Não saio de dentro de mim nem pra pescar. Ando mais por dentro de mim do que na estrada. Passarinhos existem para dar movimento ao entardecer. Eu me recolho no abandono para ser livre. Desenharam nas pedras meu silêncio. Uma árvore que eu vi dava borboleta em vez de flor. Só o cinzento de uma tarde me amanhece. Mexer com gratuidades me enriquece. Manoel de Barros. Em Espelunca