sexta-feira, setembro 17, 2010

Primavera

Sandro Botticelli. Primavera. 1482, Têmpera sobre Madeira, 203 x 314 cm Florença, Galeria Ufizzi.

Obra de temática profana mitológica clássica, que com símbolos das divindades pagãs, apresenta-nos a chegada da estação que abre o círculo da vida e da sua renovação, ou seja, a primavera. Na concepção mitológica, Vênus, deusa do amor dos humanos e dos deuses, é a responsável pelo desejo da água, que tudo fecunda e renova. No quadro de Botticelli, Vênus aparece no centro da obra, mas não sendo a principal personagem da pintura. A deusa é representada de forma discreta, vestida. Vênus tem gestos nas mãos, e como uma madona parece abençoar o mundo. À sua cabeça, vemos Cupido, que com os olhos vendados, aponta a sua seta para a três Graças, que estão do lado esquerdo da deusa do amor. Quando descortinamos a obra a partir da figura de Aglaia , Tália e Eufrósine[1], as três Graças, Cárites ou Dons, é que começamos a encontrar sinais dos traços precisos da filosofia neoplatônica. As Graças surgem profanas, virginais, sensuais, trajando vestes transparentes, harmonizando a beleza das cores primaveris, pulsantes pela intervenção dos corpos humanos. Mais a esquerda do quadro está Mercúrio (Hermes), o mensageiro dos deuses, com suas sandálias aladas, trazendo uma túnica vermelha. Mercúrio dissipa as nuvens, rompe com o inverno, e traz o sol de primavera. Warburg associou esta pintura às festividades de maio na Corte dos Médici: o torneio de 1475, celebrado pelo poeta Poliziano, na qual se ilustrou Giuliano de Médici: a volta da paz, depois do fracasso da Conspiração dos Pazzi, que matou Giuliano e poupou Lourenço de Médici. Apesar disso, segundo o mitógrafo Jean Seznec,[2] há um ar longínquo, uma atmosfera quase irreal na obra: estamos num mundo que não parece ser o dos vivos e ali, os grandes enigmas da Natureza, da Morte e da Ressureição flutuam em volta das formas sonhadoras da Juventude, do Amor e da Beleza, fantasmas de um Olimpo ideal.

Quando voltamos para a direita de Vênus, vamos encontrar Flora, a deusa das florestas e das flores. Flora traja roupas floris, das roupas a deusa espalha as flores pelos campos. Flora é a única personagem da obra a olhar diretamente para o observador, como se fosse atirar as flores além daquela paisagem, atingindo todos os que contemplam a obra. À direita da obra surge Zéfiro, o vento do oeste. Zéfiro na mitologia é personificado como um vento agradável, uma brisa suave, é ele o mais suave de todos os ventos, o mensageiro da primavera. Zéfiro, retratado aqui como um ser esverdeado, enlaça a bela ninfa Clóris. Logo que Zéfiro a toca, flores perfumadas saem de sua boca e e ei-la transformada em Flora, a mensageira da renovação. Eu era Clóris e agora é que me chamam Flora, escreveu Ovídio em suas Metamorfoses.

Na mitologia romana Flora é a mulher de Zéfiro, na mitologia grega ela é identificada com Clóris, uma das Alseídas, ninfa das flores. Conta a lenda que Zéfiro viu Clóris num dia de primavera, apaixonou-se fulminantemente por ela, raptando-a. Do amor de Zéfiro e Clóris nasceu Carpo, o deus dos frutos. É no abraço (ou rapto) de Zéfiro a Clóris que começa a obra de Botticelli. As transformações e as progressões de Zéfiro a Clóris e deste a Flora exprimem, segundo Edgard Wind ( 1900 – 1971), a dialética neoplatônica do amor.

Para alguns, esta dialética faz nascer a beleza de uma discórdia entre a castidade e o amor. Clóris é a castidade e Zéfiro, o amor: sua união engendra a beleza primaveril que cobre a terra de flores. Mas, no Jardim de Vênus, segundo Jean Delumeau, conhecemos apenas a primeira metamorfose do amor. Avalia o autor que, de fato, por baixo de Vênus, um cupido alveja com a mão segura, apesar dos olhos vendados, uma das três graças que dançam à esquerda. A vítima é a a que figura no meio do grupo das três irmãs, a Castidade. A da direita, com o penteado adornado de pérolas é a Beleza, a da esquerda, a mais atraente, é a Volúpia. [3] A Castidade é, portanto, a iniciada no amor pelas duas companheiras com a proteção de Vênus que conduz a dança das Três Graças: uma dança que não evoca a sensualidade terrena, pois a Castidade vira as costas para o mundo e olha Mercúrio, o mensageiro e deus hermafrodita, o que tem nas vestes chamas invertidas, símbolos funerários (Mercúrio era o que iniciava os homens nos segredos de além-túmulo). Na primavera, Mercúrio aponta o dedo para o Céu, e expulsa para longe, com seu caduceu, as nuvens, os desejos carnais, para que possa revelar às almas a eleição e a beleza oculta nos mistérios divinos.

Portanto, a voluptuosidade à qual a Castidade é convidada, não é a da terra, a flecha que a atinge é a flecha do amor transcendente. Assim revela-se a significação neo-platônica da obra: o movimento geral do quadro deve ser lido da direita para a esquerda e não é por acaso que Zéfiro é simétrico a Mercúrio. O ritmo dialético do universo neo-platônico está na dinâmica do emanatio, raptio e remeatio, isto é, na emanação dos seres a partir de Deus (emanatio), a conversão da alma ao Criador que a chama (raptio) e o regresso ao Divino (remeatio). Onde está Flora, o pintor representou a emanatio, a descida do divino ao concreto terrestre. Mas, ao centro, o filho de Vênus fere a alma sedenta de verdade. Castidade, iniciada pela Beleza e pela Volúpia, aceita um amor que a afasta da terra. Deixa-se levar (raptio) e volta-se para Deus. Mercúrio a guiará para a contemplação da Divina Beleza (remeatio).

É possível, portanto, a partir da obra, compreender a fórmula antes expressa por Jacob Burckhardt como a arte segundo as tarefas. Tarefas aqui entendidas como as comitências a questavam submetidos os artistas nas encomendas, no culto público, no gosto erudito eno gosto popular. As concepções neo-platônicas da Academia de Florença estavam nas raízes do povo italiano pela sua história pregressa, seus arranjos sócio-políticos, suas bases pré-antigas e sua cultura artística como afirmou Jacob Burckhardt. Pela obra de Botticelli, podemos acessar as características históricas de uma Itália moderna, ainda não unificada, em que imperava o espírito da cultura renascentista. A arte, explica-nos Burckhardt, é o sintoma de longos e complexos processos culturais. As características de uma cultura, cuja origem dificilmente se deixa detectar, às vezes estão em sensibilidades veladas, presentes muito antes de se expressarem na arte, quando, então, podem tomar consciência de si próprias.[5] Assim, as manifestações artísticas como resultado de interação entre forma e conteúdo poderiam ser avaliadas e utilizadas como fonte ímpar para a compreensão da cultura de uma época.

Warburg vai ampliar os estudos e acrescentar a eles uma tônica psicossocial, considerada fundamental para os atuais estudos da imagem. Ele fará o reconhecimento de elementos que sobrevivem no tempo, as formas que traduzem a força psíquica das imagens e que tem função psicossocial e de reter a memória coletiva: a pathosformel. Termo desenvolvido por ele, as formas do pathos (do gr. paixão), foram usadas para localizar as sobrevivências viscerais da índole pagã, em tensão com a moral e a ética cristã, conflito próprio do homem do Renascimento. O pathos antigo estava relacionado a sentimentos intensos e dionisíacos em confronto com a harmonia apolínea, o controle e a disciplina da moral religiosa.

[1] Definidas dessa forma na Teogonia de Hesíodo.

[2] Citado por Jean Delumeau, op. cit, p. 222.

[3] DELUMEAU, Jean. A Civilização do Renascimento. Lisboa, Editorial Estampa, 1983, p. 114.

[5] BURCHARDT, Jacob. A Cultura do Renascimento na Itália. São Paulo, Cia das Letras, 1991. p. 219.

domingo, setembro 12, 2010

A Liberdade é Azul?


Wassily Kandinsky. In Blue. 1925. Oil on canvas. 80 x 110 cm. Kunstsammlung Nordrhein-Westfalen, Düsseldorf, Germany

O azul evoca um movimento a um só tempo, de afastamento do homem e movimento dirigido unicamente para o próprio centro, que, no entanto, atrai o homem para o infinito, desperta-lhe um desejo de pureza e uma sede de sobrenatural. Wassily Kandinsky


As coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis: elas desejam ser olhadas de azul. Manoel de Barros


Azul do céu. Alguém vive uma tragédia: a perda do marido, um famoso compositor e da filha pequena em um acidente de carro. Acorda em um hospital, quando recebe a notícia. A vivência dessa dor é tratada de maneira sensorial, do ponto de vista interno da personagem. Cenas azuis.


Azul do vazio. Dor, silêncio, solidão. Na necessidade imperativa e inconformada de continuar, a personagem desfaz-se das referências de seu passado. Não sem antes revisitar a casa, contemplar as sobras de vida a animavam. Dentre os objetos, um pirulito. Degusta-o, tritura-o com força instintiva entre os dentes. Era um pirulito azul.

Azul do não estar em outro lugar, a não ser em si mesmo. Nas sobras, um objeto é preservado: um móbile de pequenos fragmentos de cristal lapidado. Brilho em meio à vacuidade, o móbile é pendurado na sala de outra casa, anônima, local onde se refugia para livrar-se do que foi, dos que foram, do que poderiam ser. O móbile é azul.


Azul da dor contida. Na estrada solitária em busca de um outro lugar, ao caminhar junto a um muro, desliza intencionalmente a mão sobre as pedras até sangrar. Algo externo e forte precisava se contrapor à dor interna, fria, contida, silente, azul.


Azul da água e dos sentimentos. Mergulha em uma piscina e chora. Lágrimas que se misturam (inúteis) no ambiente azul. Azul da água que tudo dissolve e de onde tudo se recria. Azul do mergulho e do inconsciente.


Azul da suavidade das formas. Como alguém que não mais pode ir ao passado e não tem perspectiva de futuro, a personagem fixa-se em detalhes: um torrão de açúcar que se dissolve em um café, no café que dissolve o sorvete. O doce e o amargo, o quente e o frio. Dissoluções. Sentimentos que levam ao azul.


Azul de frias recordações. Um jovem devolve a ela um crucifixo arrancado de seu pescoço durante o acidente. Ela o rejeita. Rejeita a cruz, o sacrifício, a referência antiga. Azul do distanciamento de velhas e desnecessárias bases de apoio.


Azul da libertação dos vínculos (afetivo-familiares, religiosos). A liberdade de fixar-se no que resta em meio à solidão, ao silêncio, à dor pacificada. A personagem reescreve a sinfonia do marido morto a partir das suas próprias referências. Desliza os dedos sobre uma partitura e a música é azul. Uma sinfonia para a união das nações. A busca por novas identidades em contraposição e/ou união-diálogo com o outro. Encontra a amante do marido morto, grávida. Mais um nível de libertação das idolatrias afetivo-emocionais. A personagem ampara a amante e elabora a traição. Uma nova criança nasceria. (Re)significação da união, da perda e da fragmentação em outros níveis.


Sim, a liberdade é azul.


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Trois Couleurs: Bleu (Krzysztof Kieslowski, 1993)