sexta-feira, março 25, 2005

Cura

Era saudável, mas ia sempre ao médico. E não era preciso um grande motivo para fazê-lo. Um pouco resfriado, uma dor de cabeça ocasional, uma leve suspeita. Naquele ato, buscava alívio. Descrevia seus pequenos males cheios de subjetividade sentindo-se acolhido num encontro com Deus. Alguém que, pela sua infinita superioridade e misericórdia, poderia curá-lo de sua dor de alma.

quinta-feira, março 24, 2005

Decreto aos planetas.

O Sol obedece à minha sintaxe.
(Velemir Khlebnikov)
Conto todos os meus segredos, digo tudo o que penso.


Há muita falta de cuidado e respeito na afirmação acima. Qualquer um de nós guarda consigo os seus segredos. Há espaços sagrados em nossa alma. Por outro lado, quantos problemas poderiam ter sido evitados se mantivéssemos silêncio pelos pensamentos fugazes, momentos de impaciência, dúvidas de instantes. Não temos todas as soluções e nem compreendemos tudo com a limitada racionalidade humana. Nesse sentido, dizer tudo o que pensamos é, no mínimo, imprudente. No momento seguinte poderemos pensar diferente e, aí, pode ser tarde. Leva-se apenas um minuto para provocar um longo estrago. Penso, sem dizer tudo, portanto, que é saudável manter os próprios segredos, manter-se em silêncio e respeitar as zonas proibidas do outro. Mais do que uma atitude de respeito, é um ato de amor e confiança nos mistérios insondáveis da natureza humana.

quarta-feira, março 16, 2005

A disciplina do amor


Outro dia comentei com alguém que lia a Lygia Fagundes Telles há muito tempo. Lembro-me bem dos contos curtos em que ela narrava histórias que envolviam a disciplina do amor. O amor que está em nós, independente do objeto amado, o amor que não depende de barganhas (as que são fruto de nossas carências, obsessões ou caprichos), o que é paciente, forma um substrato de sentimento que está no fundo de toda experiência aparente de conflito e é incondicional. Este amor resiste ao abandono, aos obstáculos, às indisposições gerais que envolvem todos os relacionamentos. Pela minha longa experiência em amar (não riam, é verdade), penso que estamos mais preparados para este amor quanto mais inocentes somos. Como fomos um dia (quando amamos pela primeira vez) e, paradoxalmente, como voltamos a ser, a cada dia que vivemos e envelhecemos. Para amar com disciplina é preciso acreditar no amor. Desvestí-lo das mágoas e desilusões que encaramos pela vida, considerar com tranqüilidade os “nãos” que recebemos, os sonhos de amor não realizados. Amar com disciplina é amar, apesar de. A maturidade nos prepara para sermos novamente crianças no amor.

sexta-feira, março 11, 2005

Mar Adentro

A morte não é terrível. Passa-se ao sono e o mundo desaparece – se tudo correr bem. Terrível pode ser a dor dos moribundos, terrível também a perda sofrida pelos vivos quando morre uma pessoa amada. Não há cura conhecida (...). O que as pessoas podem fazer para assegurar umas às outras maneiras fáceis e pacíficas de morrer ainda está por ser descoberto. (Norbert Elias. A Solidão dos Moribundos)

Estávamos na livraria do shopping antes do início do filme, quando recebi um telefonema. Era um amigo avisando-me da morte de uma colega de faculdade. Aconteceu no domingo passado e nem fiquei sabendo. Soube que lutava contra o câncer já há algum tempo, mas que estava bem, confiante que seria curada (era muito religiosa). Entrei no cinema com o coração dilacerado. A velha ferida do peito sangrando todas as dores. Mar adentro. No filme, Ramón Sampedro luta para morrer e minha amiga fazia exatamente o contrário. Nas últimas semanas chorava muito e dizia que queria viver. Queria estar ao lado dos dois filhos pequenos. Ela não tinha quarenta anos. Disseram-me que suplicou até o último instante. A despeito deste contraste, saí do filme com a sensação de que todos tinham razão: os que lutavam pela liberdade individual frente ao poder de um estado laico, os que imbuídos de sua ética existencialista queriam deliberar sobre o seu próprio direito de viver ou morrer, os que defendiam a vida a qualquer custo (mesmo que em migalhas, a vida que vale por um instante de beleza e sentido). O filme é belo e muito tocante, do início ao fim. Saí com os olhos vermelhos da sala. Algumas identificações foram imediatas: a vontade de morrer diante de algumas prisões cotidianas, a necessidade de aprender a chorar sorrindo quando a vida não nos dá outras opções e, afinal, a certeza que por pior que sejam nossas correntes (voluntárias ou impostas), nosso espírito é livre. O que alivia um pouco a dor e a aceitação sobre tudo que não podemos mudar.

terça-feira, março 08, 2005

O tempo não cura as feridas. Alivia a dor e embaça a memória.
(Do filme A Excêntrica Família de Antônia)
Dia Internacional da Mulher


Hoje é dia internacional da mulher. Tenho uma grande preguiça do discurso feminista. E há momentos que sinto que sou mais homem do que muitos homens. E fico com vontade de aprender a cozinhar e fazer tudo o que as feministas abominam quando estou apaixonada. E é isso o que eu tinha a dizer a respeito.

segunda-feira, março 07, 2005

Vingança Privada


Nino e eu temos muitas afinidades. Uma importante: gostamos de banheiro limpo. Isso significa que preciso trocar sua bandeja higiênica várias vezes ao dia. Eu as forro com jornal. Não raro ele fica esperando que eu estenda as fotos e reportagens, para que complete, de imediato, o serviço em cima. Hoje, coincidentemente, foi na Vilma Martins. Mas, não faltará oportunidade de diversão para muitas escolhas conscientes.

domingo, março 06, 2005

Nóvoa

Hoje assisti a uma palestra do Vice Reitor da Universidade de Lisboa, o professor António Nóvoa. Ele foi um grande inspirador de minhas reflexões teóricas e práticas a respeito do trabalho de recolher histórias de vida na formação de professores. Gostei muito do que ele disse (estava quase sem voz, afinal, quem resiste ao calor brasileiro?). Começou a fala com um quadro de A. Breton e outros: O Cadáver Esquisito (ou elegante). Técnica surrealista que envolvia várias mãos na composição de uma obra e que inspirou um antigo blog que possuíamos, o blog esquisito, escrito com o Luís (Ene) e o Alysson Ferrari (J. Kern). Já comecei a gostar daí. Depois, disse algumas pérolas, como:

Diz-me como ensinas e dir-te-ei quem és.
Ou
Diz-me quem és e dir-te-ei como ensinas.

Professor é como médico: um erro pode ser fatal, trágico na vida de um indivíduo.

A memorização é necessária para o processo criativo (sempre pensei nisso, afinal, Mnemósina é mãe das musas).

Falou também de programas curriculares como programas alquímicos e em transposições deliberativas, uma substituição ao termo transposição didática, influenciado por J.Habermas e que envolve conhecimento teórico, prático, profissional e pessoal (inclua-se aí os valores e a ética).

E terminou com a Teoria do Caos, lembrando que as asas de uma borboleta podem influenciar um tufão no outro lado do mundo, além do que é preciso sonhar. E que os sonhos têm que acontecer, pois tudo que é necessário, é possível.

Dei a ele o meu livro e ele me disse que temos grandes afinidades. Ele também fez história e se doutorou em educação e é apaixonado por teatro (amanhã apresento essa disciplina por lá).

Agora só falta ele me convidar para dar uma palestra em Lisboa.Vocês sabem, adoro Fernando Pessoa (rs).

sexta-feira, março 04, 2005

solidão

quando estava na Índia, um terapeuta budista leu um desenho que eu havia feito. disse que os traços mostravam que eu era uma pessoa solitária (ok. ainda não sei direito como ele conseguiu descobrir isso naqueles rabiscos toscos e despreocupados). senti alívio quando afirmou, logo em seguida, que o desenho, entretanto, não apresentava psicopatias(menos mal). de fato, penso que sou uma pessoa que convive bem com a solidão. a começar pelo fato de que as atividades que mais aprecio na vida estão favorecidas pelo estar só: ler, estudar, escrever. o que não significa que não gosto de estar rodeada de pessoas (poucas, por vez, confesso). mas, há momentos em que sinto um peso negativo na solidão. quando estou alegre. nessas horas é muito, muito bom, ter pessoas para compartilhar.

quinta-feira, março 03, 2005

Alice Poliana da Silva


Se acreditar que é possível

viver sempre um grande amor

for ilusão, eu sou

a louca que crê

a tola que escolhe não ser

racional.



Se acreditar que o sempre não dura um só dia

mas sobrevive à revelia

da rotina , do tédio, do esquecimento da paixão

se isso for utopia, eu sou

a ingênua da rua,

Alice Poliana da Silva,

muito prazer.



Se tentar mudar a maré pro meu lado, pro seu lado, nosso barco

com eterno vento a favor,

se isso for fantasia, eu sou

o guizo do palhaço

que toca e avisa:

vem aí uma romântica

em estado terminal,

gastando um resto de vida com amar, crer, brigar e sonhar.

Essa, sou eu.

(Tatyana Badim)
Obrigada, Taty :)

terça-feira, março 01, 2005

Viver Distraído

Uma vez li uma crônica, acho que do Rubem Braga, sobre estar distraído (se não for dele, peço desculpas, estou com preguiça de procurar). Contava a história de um casal que ficava o tempo todo analisando a relação e que, por esse motivo, a despeito do amor que nutriam um pelo outro, acabaram se separando. Fico pensando que, de fato, é bastante útil viver distraído. É, sem pensar demais, analisar demais todas as coisas. Queremos sempre respostas, de preferência exatas. Estabelecemos prazos a todas as coisas: elas têm que acontecer até um determinado momento. Ditamos regras inflexíveis para os outros e para nós mesmos. E como perdemos tempo com titicas que não valem a pena: pequenas mágoas, irritações banais. Porque comigo tem que ser assim! Inflamos o peito e saímos por aí, armados com nossos valores, nossas leis morais, aplicando a espada do querubim a todas as situações. Quanta bobagem. Ontem uma aluna comentou que o seu marido nunca esquece todas as coisas que ela diz, mesmo de passagem. Ele se vangloria de ter “memória retentiva”. Enquanto ríamos da história, um outro soltou lá do fundo da sala: - Ah, filha, fala pro seu marido aí que tão importante como lembrar, é, talvez, esquecer.