quinta-feira, dezembro 23, 2004

Natal
Nunca senti tanto a pressão do Natal como nesta semana. Muitos afazeres e grandes desafios, inclusive os que se multiplicaram em função da época e das circunstâncias. Tento desviar-me deste desconforto que encontra ressonâncias em dores temporariamente guardadas para depois, nos sonhos frustrados, nas ausências sentidas que parecem adquirir forma nestes dias.Comentei isso com a Sra da limpeza lá da loja, a Dona Jô. Disse-lhe que não me lembrava de um Natal tão triste. Ela pareceu indiferente às minhas reflexões e completou, animada, que estava pensando na melhor forma de trazer no ônibus coletivo a grande panela para cozinhar o arroz do jantar que ofereceríamos aos companheiros de trabalho. Encontrou a panela hoje, pois estava perdida em meio à mudança forçada pelo oficial de justiça quando lhes pediu desocupação imediata. Disse-me também que não me preocupasse com talheres ou pratos. Ela os pediria em empréstimo à mulher do restaurante vizinho. Não era preciso muito dinheiro, não. Ia comprar frango e verduras no mercado da esquina. Ah, e tinha, ainda, a sobremesa, a que traria da fábrica do bairro onde pegava o primeiro ônibus (era uma delícia, eu ia gostar). Admirada com tanta disposição, desisto de considerar a hipótese de cancelamento da reunião programada. Quando chego do almoço encontro em cima da mesa de trabalho um envelope com um adesivo escrito em letra cursiva de criança: Para Heloisa...dentro dele, um cartão com a imagem de Cristo e suas palavras de incentivo à busca primeira do reino. Leio o texto que diz que os sonhos são possíveis, pois Deus se fez homem e mudou a história humana. Natal era o tempo, portanto, dos milagres. Em letras trêmulas, Dona Jô assina em baixo: com votos de muita estima. Sigo, então, meio encabulada, para a confraternização deste final de tarde em que comeremos o arroz com galinha de Dona Jô e experimentaremos sua receita de esperança renovada pelo amor e pela simplicidade. Lição ensinada pelo menino sagrado nascido há mais de dois mil anos e que tento aprender, a cada dia.

quinta-feira, dezembro 09, 2004

Memórias e Momentos de Dor

Procuro manter os olhos voltados para o futuro, mas há dias, assim, tão sem expectativas, que as memórias involuntárias de Proust ficam favorecidas e daí, qualquer madalena, qualquer música, voz ou gesto, fazem-me voltar a um tempo feliz. Revivo este tempo perdido quando ouço algumas músicas da infância, as que tocavam no rádio da cozinha da Teresa, sempre ligado, na casa azul, a que sempre julguei a mais bonita da minha rua. Uma moldura de cimento na janela do quarto dos meus pais dava para as plantas altas do jardim e formava um esconderijo. Lá eu ficava horas, batendo bife com as folhas, sonhando e lendo numa deliciosa solidão anônima. Rua 209, número 80. Deve ter sido o primeiro endereço que decorei na vida. Há mais ou menos um ano, procurei este palácio, templo das minhas memórias de infância. Lá havia uma pequena casa cinza sem jardins ou crianças brincando, mas minha bela casa azul ainda vive em mim, como um refúgio em momentos de dor.

sábado, dezembro 04, 2004

Nix e a noite adolescente

“No começo era o Caos. Não havia luz e também as trevas não existiam. A noite (Nix) é gerada do Caos e dela nascem o sono(Hypnos), o senhor da morte(Tânathos) e as deusas do destino (moiras)”....
(Hesíodo. Teogonia.)

Marco é um aluno incomum. Veste-se sempre de negro. O cabelo, no mais belo estilo punk crista de galo. Um piercing no canto esquerdo do lábio. Sim, chama a atenção. Todavia, está sempre em silêncio. É discreto e possui aquele olhar inquiridor, profundo. No início das aulas estava sempre solitário. Sugiro-lhes grupos de vivência alegórica de um mito e ele me apresenta a escolha do grupo em que faz parte: o mito de Nix. Fico surpresa com a opção, mas concordo. Recebo dele, seu primeiro exercício autobiográfico e ele escreve que não consegue se lembrar da primeira infância. Destaca a adolescência, o contato com amigos que estavam fora dos “problemas mundanos”. Diz, então, “fiquei cego e aproveitei tudo que nos importava”. Marco presta muita atenção nas aulas, olha sempre atento para as imagens míticas que apresento, mantém um vivo interesse pelas histórias. Num outro dia, apresenta-me o roteiro, pronto e muito bem escrito: contava a história de um adolescente, suas dificuldades de comunicação e relacionamento com o pai. Em suas reflexões noturnas encontra Nix e dialoga com ela. É influenciado por Nêmesis, pelas Moiras e por Tânathos, o deus da morte. No final, mata o pai, a mãe e se suicida.
Tento disfarçar o meu choque com o desfecho e pergunto se não ficaria muito trágico, escuro. Ele argumenta que não. Essa era mesmo sua intenção: causar desconforto. Era contra um final suave, pois não queria consolo. E não seria a morte o maior consolo? Pergunto. A dificuldade não estaria em manter-se vivo? Marco não responde. Ignora até mesmo a oposição de alguns colegas que achavam que os conflitos adolescentes com o pai não se constituiriam em motivos suficientes para a tragédia. No dia da apresentação encontro a sala de aula muito bem decorada: uma lona negra divide os espaços entre cozinha e quarto. Na cozinha, uma toalha sobre uma mesa arrumada para o café da manhã. É nesse local que ocorrem as maiores discussões com o pai e o adolescente sob os olhares submissos da mãe preocupada em servi-los e amenizar os conflitos. Dois aspectos são muito marcantes: os gritos e a intransigência do pai e as figuras negras míticas que povoam o quarto do adolescente. Quando o jovem consuma o assassinato do pai, Nix e seus companheiros negros tomam o cenário principal. Sentam-se na mesa e o instigam. A seriedade dos alunos na representação calam os risos abafados. Procuro Marco e não o vejo. No final da apresentação, pergunto aos alunos onde estava o roteirista e eles me informam que estava com febre. Uma colega confidencia-me que no dia anterior havia discutido seriamente com o pai. Fico preocupada e vou para casa pensando nas ressonâncias do mito-guia escolhido pelo aluno. Reflito que a noite, Nix, é fruto da necessidade do Grande Espírito de projetar-se e conhecer sua própria existência. Tensionadas em si mesmas, as trevas do Caos e da Noite explodiram em luz. Na versão órfica, é deste esforço que nasceu Eros, o Amor, que ocupou o Nada e impregnou o universo despertando a semente da vida. O amor uniu a luz e as trevas e as duas metades converteram-se no céu (Urano) e na terra (Gaia). É da luta de Urano com o filho, Saturno, e dele com Zeus que o caos é ordenado e cria sentido. O Caos aqui é o inconsciente em potencial, a partir do qual tudo pode ganhar forma. A criação pode ser um ato caótico, que envolve conflitos, lutas entre o adulto (pai) e a criança (filho), entre o consciente o inconsciente. É uma luta dolorosa, em que a morte pode ser uma alternativa para a permanência da vida, em constante transformação. Marco escreve em seu relato autobiográfico: “Nos transformamos a cada olhar, leitura, interação com outro ser, mas mantemos nosso eu...dizer que estou pronto é precipitação, pois estou em processo de mutação sóbrio”. Sim, Marco estava se transformando. A catarse do teatro e a história mítica estimulavam sua autoconsciência e o auxiliavam a atravessar este momento de transição.