terça-feira, julho 26, 2005

Maria Clara e a Samaritana

Perguntei à Maria Clara, minha filha de treze anos, se não iria estudar para a prova do dia seguinte. Ela disse que não. Não era necessário. Era de religião. Mas, e o conteúdo? Estava todo em dia? Questionei. Ela ironizou dizendo que as provas de religião costumavam apresentar a seguinte pergunta:
Joãozinho espancou seu irmão Zezinho. Você acha que ele agiu corretamente? Justifique sua resposta. Não consegui deixar de rir, até que ela, empolgada com minha reação, considerasse convicta: Religião consegue ser mais inútil do que artes. Pois bem, ferrou-se. Tirou uma nota baixa na prova, o que a deixou bastante chateada. Perto do seu 9.0(nove) em matemática está lá, um 6.5(seis e meio) em religião, destoando das notas restantes. A professora resolveu deixar de lado as análises do mau comportamento de Joãozinho e pediu uma reflexão sobre a História da Samaritana. Ela não tinha lido a história inútil e, portanto, suas interpretações também não foram de muita utilidade. Vai, portanto, para ela, parte da análise realizada pelo teólogo ortodoxo, PHD em Psicologia, o ex-dominicano Jean-Yves Leloup, que vou tentar traduzir em simples palavras. Leloup traduziu a história do Evangelho de São João, diretamente do grego. Nela, o nome de Jesus é mantido como Ieshua.

Todos conhecem a história (façamos de conta que sim):

Em viagem com os discípulos, Ieshua chega à uma cidade da Samaria, Sicar. Ieshua era judeu e os judeus não se davam com o povo da Samaria. Mas Ieshua estava lá de passagem e, enquanto seus discípulos foram arranjar algum alimento, ele chegou até um poço, uma fonte, para tomar água. Pois bem, lá estava uma bela mulher, com seu cântaro, que havia ido ao local para buscar água (vale dizer que este poço era um lugar importante para a cidade. Diziam que ali, o patriarca Jacó havia realizado, uma vez, o milagre de fazer as águas do fundo chegarem até a superfície. Portanto, era uma fonte sagrada, um local especial). Ieshua chegou ali na 6a. hora, o que quer dizer, ao meio dia (hora em que não há sombras e o sol está a pino). Pediu água para a mulher. Ele diz a ela: Dá-me de beber! A Samaritana lhe responde, com um misto de curiosidade e certa indignação: Como é que um judeu pede água a mim, uma Samaritana? Ieshua lhe responde de forma direta:
Eu lhe ofereci o dom de Deus que diz: Dá-me de beber! Se conhecesses esse dom, tu é que me pedirias e não terias mais sede, porque eu te daria a Água Viva. Ou seja, em outras palavras, Jesus falou como os goianos agro-boys costumam fazer, sempre que insultados: Filhinha, você não sabe o que está fazendo e nem com quem está falando!

Desejo de riqueza material: a primeira etapa da busca

Leloup compreende esta história como o arquétipo da busca e do desejo, representado pela mulher, nossa psique. Dito de outro modo, todos nós, temos interiormente desejos, buscamos alguma coisa e neste início, a história nos diz que a primeira etapa de nossa busca para saciar nossa insatisfação interior, está nas coisas do mundo. A Samaritana levou seu cântaro para buscar água, a água material, a que se pode ver e sentir com nossos sentidos físicos. Assim, achamos que nossos desejos podem ser realizados com livros, cds do Nightwish, coturnos e outros sonhos de consumo, entende? E que nossa felicidade depende disso. Todavia, Ieshua é claro com a mulher, quando lhe diz:
Quem bebe da água desse poço terá sede de novo, mas aquele que bebe da água que eu lhe darei, não mais terá sede. A água que eu lhe darei se transformará nele numa fonte, num jorro de vida eterna!
Isso significa que não adianta buscar a satisfação do nosso desejo interno nas coisas materiais. Elas não vão nos saciar. E quem escolhe este caminho está sempre querendo mais, mais, e mais (Marcos Valério ganhando dinheiro e favorecimentos do PT, por exemplo). Esta é a primeira etapa de nossa busca, a mais primária. Mas, a história não termina aqui. A Samaritana, então, pede à Jesus: Dá-me dessa água para que eu não tenha mais sede e não tenha que vir aqui para tirar água do poço. No que Jesus responde: Vá buscar teu marido e volte aqui.

Desejo de riqueza afetiva: a segunda etapa da busca

Aqui Jesus faz com que a Samaritana entre em outra etapa de seu desejo, para que ela possa compreender sua incompletude. Porque talvez não encontremos a felicidade nas coisas materiais, mas talvez possamos procurá-la nas riquezas afetivas, na riqueza das relações. Conheço muita gente que vive assim, atrás de um amor, de alguém que vá resolver todos os seus problemas. E a Samaritana parece compreender a dificuldade de satisfação deste desejo, quando responde a ele: Não tenho marido.
Ieshua, então, dá-lhe um show particular de vidência e elogia-lhe a sinceridade. Afirma-lhe que sim, o homem que estava ao seu lado não era, de fato, seu marido, e que ela já tinha tido cinco outros no passado. Ela estava só e não conhecia a unidade e o apaziguamento dos seus desejos por esta via, portanto. Com este diálogo, Jesus estava ensinando a ela sobre o seu desejo e a sua busca, percebe? Mas a história não termina aí. A Samaritana se impressiona com a resposta de Jesus e afirma:
Rabi, vejo que és um vidente, um profeta. Nossos pais adoraram sobre essa montanha e vós dizeis que é em Jerusalém que é necessário adorar (pois ele era um judeu). Ao que Ieshua responde:
Mulher, crê em mim. Dia virá que não será nem sobre essa montanha, nem em Jerusalém que vós adorareis o Pai. Vós adorais quem não conheceis (...) É chegada a hora, e nós estamos nela, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai no espírito e na verdade, no Sopro e na Vigilância, porque são estes adoradores que o Pai procura.
A mulher lhe diz: Eu sei que quando o Messias chegar ele nos explicará tudo.
E Ieshua lhe revela: Sou Eu. Sou Eu que te falo. Eu sou aquele que É.


Desejo de riqueza religiosa: a terceira etapa da busca.

Pois bem, aqui está a terceira etapa da busca. Já que não resolvemos nossa busca de felicidade nas coisas materiais e nem no nível afetivo, alguns de nós buscam a satisfação na religião. E aí a Samaritana faz uma pergunta importante ao Mestre. Onde deve estar nossa religião? (nas Montanhas da Samaria ou em Jerusalém?). Qual é a melhor religião? E a resposta de Jesus vai mostrar que este é mais um engano. Nós nos decepcionamos na medida das nossas expectativas, diz Leloup: Pedimos muito às coisas, pedimos muito às pessoas, pedimos muito às religiões. Quer dizer, pedimos o infinito às coisas finitas. Não pode dar um bom resultado, não acha? (Lembra da sua professora de catequese? Pois é). Assim, devemos saber o que adorar (no sentido antigo – onde orientar nosso desejo para a fonte de todo o Ser). Jesus diz: não é em nenhum desses lugares, nem nas coisas, nem nas pessoas e nem na religião. E ele dá a resposta da qual é o exemplo vivo: devemos orientar nosso ser para o nosso Sopro, entrar no nosso Sopro e permanecermos vigilantes, pois aí está o fio que sobe até a fonte.

Eu Sou Aquele que É

Depois que Jesus lhe disse isso, a Samaritana deixou o seu cântaro e correu para a cidade anunciando às pessoas que havia encontrado um homem que lhe disse tudo que ela era. Que ela era, que Eu Sou. Jesus disse, Eu Sou aquele que é. Quando ele dizia Eu Sou, ele não queria dizer que era um bambambam não, ele queria dizer: Deus em mim É. O Sopro em mim habita. Habita em mim, e em todos. Basta que eu oriente o meu desejo para Ele e passe a viver vigilante, a partir dele. Quando estou consciente disso posso deixar o meu cântaro (como a Samaritana), pois a fonte está em mim. Não preciso mais pedir apaziguamento às coisas externas, quer sejam elas materiais, afetivas ou religiosas, pois carrego em mim a própria fonte. E isto me autoriza a dizer isso às pessoas como fez a Samaritana. Assim, posso retornar às coisas materiais, pois as possuo, mas elas não me possuem (ver música da Pitty), posso ir às minhas relações afetivas e vivenciar qualquer religião, mas serei livre em relação a elas. Meditar sobre a história da Samaritana é, portanto, compreender o itinerário de nossos desejos, os que nos guiarão por toda a nossa vida, o que pode ser bastante útil, viu coisinha?

Referências deste post:

História da Samaritana: Evangelho Segundo João, 4: 1-30.
Jean-Yves Leloup: LELOUP, Jean-Yves. Caminhos da Realização. Petrópolis, Vozes, 1999.
Marcos Valério e o PT: Ah, deixa pra lá.
Música da Pitty: Só de Passagem.

domingo, julho 24, 2005

Pra Rua Me Levar

Não vou viver como alguém que só espera um novo amor. Há outras coisas no caminho onde eu vou. Às vezes ando só, trocando passos com a solidão. Momentos que são meus, e que não abro mão. Já sei olhar o rio por onde a vida passa, sem me precipitar e nem perder a hora. Escuto no silêncio que há em mim e basta. Vou deixar a rua me levar, ver a cidade se acender. A lua vai banhar esse lugar e eu vou lembrar você. É, mas tenho ainda muita coisa pra arrumar...promessas que me fiz e que ainda não cumpri. Palavras me aguardam o tempo exato pra falar. Coisas minhas, talvez você nem queira ouvir. Já sei olhar o rio por onde a vida passa, sem me precipitar e nem perder a hora. Escuto no silêncio que há em mim e basta. Outro tempo começou pra mim agora.
(Ana Carolina / Totonho Villeroy)

terça-feira, julho 19, 2005

Dica de Férias

Imaginem um homem, cuja vida está no piloto automático, que, ao andar na calçada em uma manhã qualquer, depara-se com um fragmento de construção gigantesco que cai a um passo em sua frente. Mais um passo apenas e ele estaria morto sob a pedra que despencou do alto. Este é o ato detonador de um impulso. O homem vira a esquina e resolve que seria outro. Como se houvesse, de fato, morrido, assume outra identidade, abandonando a vida anterior, profissão, família e todo o resto. Temos assim o início de uma história dentro de outra história. Como braços da trama principal, as histórias se sucedem, se interpenetram, se sobrepõem umas às outras no livro que estou lendo. Chato, né? Ficaria com preguiça de ler se me contassem isso. Ledo engano. Todas as histórias do meu livro são interessantes. Especialmente porque as personagens (e isto parece ser uma característica do autor) são muito bem construídas, e estão sempre às voltas com aquelas perguntas filosófico – existenciais para as quais nunca temos uma resposta satisfatória, mesmo que nos seja imprescindível fazê-las. Vivendo no limite. Elas estão sempre assim. Em alguns casos, sofreram perdas irreparáveis ou estão seriamente doentes, ou melhor, foram submetidas a situações que as levaram a explorar as questões mais complicadas da vida. Então é mais um daqueles livros sem ação e com intensos e longos monólogos interiores? Errado. Há uma dosagem exata e encantadora entre a ação e o pensar reflexivo. Acrescente-se a isso, uma narrativa viva, uma trama original e uma pincelada de ironia e humor sutis. E, ainda, para finalizar, ensinamentos de como aliviar-se, utilizando-se da literatura e da escrita como meios de sistematizar perguntas sem resposta. Ah, em tempo: a encadernação do livro é bárbara - uma edição bem cuidada com uma ante-capa macia de papel canelado azul - daqueles que a gente fica acariciando antes de abrir. Não me perguntem o que acontece com o homem sem identidade do início deste parágrafo. No momento, por uma série de acontecimentos, ele está preso num abrigo subterrâneo, e o escritor está pensando o que fazer para tirá-lo de lá de uma maneira coerente e não usual. Se souberem o final não me contem rápido. Agora vou ler devagar, para degustar cada linha. O nome do livro é Noite do Oráculo e o autor é Paul Auster. Uma amiga contou-me que, na Flip, o autor disse que é apenas uma história de amor. Mas o livro é muito mais que isso.

quinta-feira, julho 14, 2005

ainda quando

esquece aquela espera
amar é infindo
e além do tempo
ancora o seu destino:
amar é isto.
esquece aquela dor, esquece
aquela sina de ser e ser ainda
entre o verde , amiga, a vida e o vinho.
durar o quê e quando? e quanto?
além da chama clara de uma vela?
agora é sempre, vê. e nada escolhe
ser eterno, essa miragem.
nem dura a palavra mais
do que o desejo de dizê-la
e nem morte menos
do que o medo de esquecê-la.

(Carlos Rodrigues Brandão)

quarta-feira, julho 13, 2005

Falta de Assunto

Li um pouco o filósofo Paul Ricoeur nestes últimos meses. Encantou-me a importância que dá ao passado. O que não existe a não ser na reconfiguração do presente. Como historiadora, tenho uma nobre missão: recriar o tempo e dar-lhe significados com um discurso de autoridade. Ok. O passado está em nós e é importante. Mas o futuro também está. Somos, da mesma maneira, aquilo que esperamos dos dias que se seguirão. E sob esta perspectiva, os videntes são tão importantes quanto os historiadores. (Re)significam nosso futuro. Tempo que, como o passado, também não existe. Paul Ricoeur fala do tempo fenomenológico: o eterno presente, onde tudo acontece e é efetivamente definido. Assim, todo mundo devia ler Paul Ricoeur. Para viver e relacionar-se com as pessoas no aqui e agora, quando os milagres cotidianos acontecem e nem são percebidos. Passado e futuro absolutos são grandes e pesados grilhões. Impedem-nos de observar a beleza do caminho. Deveríamos viver como se fossemos doentes terminais: valorizando cada segundo, com um passado e um futuro displicentes, não determinantes. E os que nos amam deveriam se relacionar conosco assim, também: aceitando-nos, com a história pregressa que nos construiu e nosso futuro incerto. Não o condeno ao passado que aqui te trouxe e nem o considero uma pessoa-investimento. Encontro-o na eternidade deste instante. Acho que seríamos mais felizes se assim pensássemos.

segunda-feira, julho 11, 2005

Sonho

Viajo na noite fria
de um túnel de pedra.
Uma quietude mórbida
e sufocante dorme
sob a pirâmide.
Na trilha subterrânea
conto os passos
em que piso no chão de vidro.
Na terra vejo corpos
que se contorcem nus
e nadam na lama.
Seguro uma criança
e salto por entre pedras móveis.
Eu a protejo e sinto-me acompanhada.
Desvio-me de paredes úmidas.

Caminho cega em direção à luz.

(Desperto-me antes de alcançar a saída)

sexta-feira, julho 08, 2005

Respire, as ondas vêm e vão.

Ouço sempre a frase do título quando estou ansiosa. Minha filha costuma dizê-la, ao mesmo tempo em que me endireita a coluna. De fato, penso que a grande solução da vida é respirar. Permitir que o fluxo entre e saia sem obstáculos, o que não é nada fácil. Pude compreender melhor o poder da atitude quando me submeti a uma seção de respiração holotrópica. Era uma loucura proposta pelo meu terapeuta transpessoal. A sensação é a mesma no caso do uso de LSD. Ele me explicava, piorando as coisas, visto que nunca usei drogas de nenhuma espécie. As mãos podem se enrolar. Eu arregalava os olhos. Os pés também. Você pode ter visões. Misericórida. Eu já havia desistido, quando ele me apresentou a solução mágica para resolver qualquer efeito colateral da atividade: respire. Simplesmente continue respirando. E lá fui eu, acompanhada por alguém que não conhecia (pois precisamos ser cuidados por outra pessoa durante o ato), um garoto adolescente que parecia muito mais corajoso do que eu. Tadinho. Ele teve que se levantar inúmeras vezes para me levar ao banheiro. Minha seção de respiração holotrópica transformou-se numa vontade ininterrupta de fazer xixi sobre o mundo. Meu terapeuta disse que foi uma profunda limpeza. Achei melhor acreditar. E, é claro, fiz várias outras seções até perder totalmente o medo e experimentar um contato mais íntimo comigo mesma. Acho que foi útil como estratégia de auto-conhecimento. Além de me ensinar o princípio básico da respiração. Ansioso? Respire. Triste? Respire. Nervoso? Respire. E por aí vai. Sigo assim, todos os dias, até não sei quando, tentando manter o ritmo da respiração. Como as ondas, que, inexoravelmente, vêm e vão.
Como no poema do Luís.
As ondas vêm e vão

inspiro.
atento à sensação
produzida nas narinas
pelo ar que entra.
expiro,
atento à sensação
produzida nas narinas
pelo ar que sai.
inspiro.
a partir do ventre,
a centímetros do umbigo,
o tórax enche.
expiro.
a partir do ventre,
centímetros abaixo do umbigo,
o tórax esvazia-se.
inspiro, expiro.
respiro.
deixo-me respirar,
nada mais.
Mas, de repente, forço-me a respirar,
e inspiro e expiro com aparato,
descontrolado,
o equilíbrio perdido.
recordo-me então
que as ondas vêm e vão,
e deixo-me ir, deixo-me ir.
inspiro, expiro.
respiro.
deixo-me respirar.
não estou ansioso, nem calmo,
nem triste, nem feliz.
respiro, nada mais.
e as ondas vêm e vão.
(Luís Ene)
Obrigada, querido. Adorei.