segunda-feira, outubro 17, 2005

Releitura

Então, Almitra disse: Fala-nos do amor.
E ele ergueu a fronte e olhou para a multidão,
e um silêncio caiu sobre todos, e com uma voz forte, disse:

Quando o amor vos chamar, segui-o,
Embora seus caminhos sejam agrestes e escarpados;
E quando ele vos envolver com suas asas, cedei-lhe,
Embora a espada oculta na sua plumagem possa ferir-vos;
E quando ele vos falar, acreditai nele,
Embora sua voz possa despedaçar vossos sonhos
Como o vento devasta o jardim.
Pois, da mesma forma que o amor vos coroa,
Assim ele vos crucifica.
E da mesma forma que contribui para vosso crescimento,
Trabalha para vossa poda.
E da mesma forma que alcança vossa altura
E acaricia vossos ramos mais tenros que se embalam ao sol,
Assim também desce até vossas raízes
E as sacode no seu apego à terra.
Como feixes de trigo, ele vos aperta junto ao seu coração.
Ele vos debulha para expor vossa nudez.
Ele vos peneira para libertar-vos das palhas.
Ele vos mói até a extrema brancura.
Ele vos amassa até que vos torneis maleáveis.
Então, ele vos leva ao fogo sagrado e vos transforma
No pão místico do banquete divino.
Todas essas coisas, o amor operará em vós
Para que conheçais os segredos de vossos corações
E, com esse conhecimento,
Vos convertais no pão místico do banquete divino.
Todavia, se no vosso temor,
Procurardes somente a paz do amor e o gozo do amor,
Então seria melhor para vós que cobrísseis vossa nudez
E abandonásseis a eira do amor,
Para entrar num mundo sem estações,
Onde rireis, mas não todos os vossos risos,
E chorareis, mas não todas as vossas lágrimas.
O amor nada dá senão de si próprio
E nada recebe senão de si próprio.
O amor não possui, nem se deixa possuir.
Porque o amor basta-se a si mesmo.
Quando um de vós ama, que não diga:Deus está no meu coração,
Mas que diga antes: Eu estou no coração de Deus.
E não imagineis que possais dirigir o curso do amor,
Pois o amor, se vos achar dignos,
Determinará ele próprio o vosso curso.
O amor não tem outro desejo
Senão o de atingir a sua plenitude.
Se, contudo, amardes e precisardes ter desejos,
Sejam estes os vossos desejos:
De vos diluirdes no amor e serdes como um riacho
Que canta sua melodia para a noite;
De conhecerdes a dor de sentir ternura demasiada;
De ficardes feridos por vossa própria compreensão do amor
E de sangrardes de boa vontade e com alegria;
De acordardes na aurora com o coração alado
E agradecerdes por um novo dia de amor;
De descansardes ao meio-dia
E meditardes sobre o êxtase do amor;
De voltardes para casa à noite com gratidão;
E de adormecerdes com uma prece no coração para o bem-amado,
E nos lábios uma canção de bem-aventurança.
(Gibran)

domingo, outubro 09, 2005

Uma vida, nos detalhes.

Ao estudar métodos experimentais em história, conheci a importância dos detalhes. A reflexão veio do Dr. Morelli, um médico que desenvolveu formas de indicar a autoria de obras de arte e identificar falsificações. Descobriu que imitadores traíam-se nos pormenores: na forma como representavam as orelhas, as unhas, os dedos das mãos. Em síntese, no que era aparentemente desimportante no todo da obra. Isso, de fato, é significativo. Um aprendizado para a vida. Pessoas se traem nos detalhes. Quem nunca viveu a experiência de relacionar-se com alguém educado, mas que trata mal um garçon num restaurante? Fotografe. Guarde no seu caderninho preto os indícios de uma personalidade dissimulada. De outro lado, preste atenção em outras particularidades. Nas suas. Nos sorrisos, nos cumprimentos, nas palavras ditas de forma apressada. Já participei de bancas decisórias em que membros foram excluídos porque não responderam a uma pergunta, vestiam-se de modo inadequado ou não cumprimentaram alguém no corredor. E não houve meios de evitar isso. Uma vida profissional, uma relação, muita coisa pode estar em jogo nos atos mínimos. Como li na epígrafe de A.Warburg, escrita por um historiador italiano: Deus está no particular.

segunda-feira, outubro 03, 2005

Luis N

Um homem maduro, inteligente. Um escriba talentoso. Escreve microcontos. Seu texto, mínimo, está de acordo com sua filosofia de vida: despida de acessórios. Um homem que disfarça o refinamento interior com a ética da essencialidade. Um homem simples, de alma complexa. Nem é preciso dizer que esta é uma declaração pública de afeto. Na semana em que faz anos. Que das areias do tempo escoado das mãos possam cair sementes férteis para alimentar todos os seus sonhos. Os de hoje. Os de sempre.

domingo, outubro 02, 2005

Ensinar, aprender...

Às voltas com um programa sobre ensino, leio isto:

Tinha dez anos apenas, gostava de folgar, não gostava de aprender. Aprender é muito aborrecido!...Minha mãe fazia-me estudar, e, tanto como o estudo aborrecia-me a atitude. Obrigado a estar sentado, com o livro nas mãos, a um canto ou à mesa, dava ao diabo o livro, a mesa e a cadeira. Usava de um recurso que recomendo aos preguiçosos: deixava os olhos na página e abria a porta à imaginação. Corria a apanhar as flechas dos foguetes, a ouvir os realejos, a bailar com as meninas, a cantar, a rir, a espancar de mentira ou de brincadeira, como for mais claro!...

(Umas Férias, Machado de Assis, 1869)