domingo, março 25, 2007

Você tem um grande amor pra lembrar?

Foi a pergunta que rolou. A maioria tinha e gostaria de preservar a memória. Para manter alcançável a inocência perdida e sempre almejada do amor ideal, para refugiar-se quando a construção cotidiana do amor fosse tão difícil, para não perder a esperança e a fé no amor. Dor de amor inocente é a mais dolorida, disseram. A gente ainda não sabe que vai sobreviver. Grande amor do passado deve ficar bem guardado no arquivo morto, para não interferir nos amores do presente. Afinal, amor é ralação. Chato, trabalhoso. Mas, possível.

sábado, março 10, 2007

Sophia, ainda.












Sou o único homem a bordo do meu barco.
Os outros são monstros que não falam,
Tigres e ursos que amarrei aos remos,
E o meu desprezo reina sobre o mar.

Gosto de uivar no vento com os mastros
E de me abrir na brisa com as velas,
E há momentos que são quase esquecimento
Numa doçura imensa de regresso.

A minha pátria é onde o vento passa,
A minha amada é onde os roseirais dão flor,
O meu desejo é o rastro que ficou das aves,
E nunca acordo deste sonho e nunca durmo.

(Pirata, Sophia de Mello Breyner Andresen)

Vida Responsável

Conduzir mas sem ter um acidente,
comprar massas e desodorantes
e cortar as unhas às minhas filhas.
Madrugar outra vez e ter cuidado
Em não dizer inconveniências,
Esmerar-me na prosa de umas folhas
E estou-me nas tintas para elas,
Retocar de vermelho cada face.
Lembrar-me da consulta ao pediatra,
Responder ao correio, estender roupa,
Declarar rendimentos, ler uns livros,
Fazer umas chamadas telefônicas.
Bem gostaria de me dar ao luxo
De ter o tempo todo que quisesse
Para fazer só coisas esquisitas,
Coisas desnecessárias, prescindíveis
E, sobretudo, inúteis e patetas.
Por exemplo, amar-te com loucura.

(Amália Bautista, Espanha, 1962)

quinta-feira, março 08, 2007

Espera

Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo

mal de te amar neste lugar de imperfeição

onde tudo nos quebra e emudece

onde tudo nos mente e nos separa.


(Sophia de Mello Breyner Andresen, Coral)

terça-feira, março 06, 2007

Questão de Lógica

Depois de chegar do WR, aquele colégio estilo militar que me deprime - criado para candidatos a medicina - em que os alunos estudam os três períodos do dia e que custa uma fábula:

-Mãe, a Rayssa vai fazer veterinária.

-Hum, credo.

-Nem vem. O pai dela é veterinário, portanto, ela vai fazer veterinária.

-Anhan, interessante, boa sorte pra ela.

-Então, continuando o raciocínio: minha mãe é professora de história, portanto...

Procelária









(Sophia de Mello Breyner Andresen)

É vista quando há vento e grande vaga
Ela faz o ninho no rolar da fúria
E voa firme e certa como bala

As suas asas empresta
à tempestade
Quando os leões do mar rugem nas grutas
Sobre os abismos passa e vai em frente

Ela não busca a rocha o cabo o cais
Mas faz da insegurança a sua força
E do risco de morrer seu alimento

Por isso me parece imagem justa
Para quem vive e canta no mau tempo
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(Toda a luminosidade dos poemas de Sophia de Mello Breyner, na voz profunda de Maria Bethânia, em Mar de Sophia. É de chorar).

quinta-feira, março 01, 2007

Assuntos Mórbidos

Alguém pode me explicar por favor, por qual motivo vejo um carro de funerária quase que diariamente nos últimos três anos? Fênix, Funerária São Paulo, Pax Domini...meus amigos lunáticos diriam que vivo uma lenta morte simbólica e, por esse motivo, os atraio. Bom, melhor do que encontrar ambulâncias ou o carro da rotam, não é?
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Um amigo me contou que foi a uma festa na casa de um dono de funerária. Ele tem um jardim, que chamou de mater alguma coisa e que é dedicado à sua mãe já falecida. Entre árvores e plantas ornamentais, um objeto pessoal da mãe é iluminado junto à imagem de uma das versões da Virgem Maria. Eu hein?!!
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Morrer dá trabalho, mas já tive vontade, sim, não nego. Tinha que ser num dia sem sol (nunca pela manhã) , sem alunos, nem filhos por perto. Isso seria um péssimo exemplo, credo. Pensando nisso vejo que tenho muita culpa cristã e pouca coragem.
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Meus amigos planejam seus funerais quando estão sem assunto. Um deles quer distribuir as cinzas entre os amigos. Cada um de nós deverá guardar sua porção e levá-la, num dia indicado no testamento, a um lugar do mundo. Se ele não deixar as passagens, acho que prefiro morrer antes.

Estrangeiro












Entre um rosto e um retrato
O real e o abstrato
Entre a loucura e a lucidez
Entre o uniforme e a nudez
Entre o fim do mundo e o fim do mês
Entre a verdade e o rock inglês
Entre os outros e vocês

Eu me sinto um estrangeiro
Passageiro de algum trem
Que não passa por aqui
Que não passa de ilusão

Entre mortos e feridos
Entre gritos e gemidos
A mentira e a verdade
A solidão e a cidade

Entre um copo e outro
Da mesma bebida
Entre tantos corpos
Com a mesma ferida

Eu me sinto um estrangeiro
Passageiro de algum trem
Que não passa por aqui
Que não passa de ilusão

Entre a crença e os fiéis
Entre os dedos e os anéis
Entra ano e sai ano
Sempre os mesmos planos
Entre a minha boca e a tua
Há tanto tempo, há tantos planos
Mas eu nunca sei
Pra onde vamos

Eu me sinto um estrangeiro
Passageiro de algum trem
Que não passa por aqui
Que não passa de ilusão

(Humberto Gessinger, Engenheiros do Hawaii, A Revolta dos Dândis I)