quinta-feira, novembro 27, 2008

Clarice


Psicologicamente parece que fui muito condicionada. Mas sou livre: minha liberdade é escrever. Foi escolha ao que parece.

Minha liberdade? Minha própria liberdade não é livre: corre sobre trilhos invisíveis. Nem a loucura é livre. Mas também é verdade que a liberdade sem uma diretiva seria uma borboleta voando no ar. Mas no sonho dos acordados há uma ligeireza inconseqüente de riacho borbulhando e correndo. O estado de ser. A improvisação como modo de viver (...). Como é que se pode aprisionar um instante de beleza? E nem se pode aprisionar a harmonia. Tudo que é mais valioso não passa de um momento rápido – e logo extinto – de libertação (...).

Estou cega pelo desejo de liberdade.

Ser livre – livre de mim mesma, esse mim que foi trucidado pelo excesso secante de idéias.

Quando quero ficar livre, fico sozinha, e nua e sobretudo sem relógio.
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Para me divertir eu poderia inventar muitos fatos e histórias, inventar é fácil e não me falta a capacidade. Mas não quero usar esse dom que eu desprezo, pois "sentir"é mais inalcançável e ao mesmo tempo mais arriscado. Sentindo-se pode-se cair num abismo mortal.

O que procuro? Procuro o deslumbramento. O deslumbramento que eu só conseguirei através da abstração total de mim.

Eu quero não a idéia e sim o nervo do sonho que resulta na única realidade onde posso encontrar uma verdade. É como se eu tivesse inventado a vida - e - fiat lux. Mas o deslumbramento que eu tenho dura o espaço instantâneo de uma visão e eis-me de novo no escuro.

Como posso subir, senão aceitando minha miséria humana.
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Clarice Lispector apud Borelli, Olga. Esboço Para um Possível Retrato. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981.

domingo, novembro 02, 2008

Dicionário de Pequenas Coisas

Felicidade

Como o pudim de chocolate diet e penso como sou feliz neste momento. Com tudo que aprendi sobre ser inteiro no instante, mesmo que tudo seja tão limitado, que eu tenha uma bagagem nem sempre tão boa ou agradável ou mesmo que chova amanhã. Hoje, agora, sinto-me feliz e isto é bom.

Saudade

E foi então que olhei pra você e você pareceu diferente. Ou meus olhos haviam mudado? Era curioso e triste. Eu gostava dos meus olhos antigos pousados sobre os seus gestos, sua solicitude, sua delicada forma de amar. Agora, você era alguém que eu não conhecia e isso era ao mesmo tempo libertador e solitário. Era bom ter você em mim.

Solidão

Tenho preguiça de gente. E eu idem. Mas, pense, não se pode viver sozinho. Sim, mas preciso de momentos de solidão. Reunião com mais de cinco, não se vê ninguém. Estar com mais de cinco é uma forma de preservar-se, de permanecer sozinho. Certo, mas então para quê estar? Sei lá, é bom, às vezes. Não ser sempre profundo, não ser sempre direto, não ser sempre sério. Estar com pessoas assim, sem objetivo definido, sem a alma alerta, com o espírito desarmado pelo passado ou pelo futuro. Simplesmente estar. Estar distraído em grupo pode produzir milagres.

Memória

E de repente, em meio à fala protocolar, você fez algo antigo: mordeu os lábios para umedecê-los. E foi aí que eu me lembrei do suave gesto de contorná-los, como se com a ponta dos dedos eu pudesse guardar sua boca. E todo o resto irrompeu-se num mar de gostos, aromas e salivas fluidas.
.
Discussão
.
Calou-se diante de tão brilhantes argumentos. Fixou-se no saleiro em forma de pinguim sobre a mesa e permaneceu ali, intimamente concentrado, quase feliz.

Adélia Prado

Exausto

Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.