terça-feira, maio 30, 2006

Sob o sol das manhãs

Por mais que eu me encha de motivos, não consigo ficar infeliz num dia de sol. O grande Deus Rá, pai do Céu e da Terra, venceu a noite e fez nascer o dia. Eliminou a serpente Apópis e trouxe os deuses na barca da manhã. É como se o astro-rei, soberano, redimensionasse o mundo. Sob o sol morno das manhãs, cores, pessoas, situações, tudo fica renovado e cheio de luz. No banho cálido e protetor do sol, o mundo está seguro. Dá uma confiança panteísta no universo. No sol de lá e no de cá. No que nasce todos os dias, para todos, a despeito de tudo, em todos os lugares. O que mais importa?

sexta-feira, maio 26, 2006

O Manobrista

Quem poderia esquecer aquele sorriso? Fecho os olhos e vejo-o com nitidez. Todos os dias, nas mesmas manhãs, um jovem acompanhava-me no estacionamento próximo ao trabalho. Com uma eficiência sem palavras, ele indicava-me vagas e cuidava para que eu colocasse o automóvel, sem dificuldades, em locais seguros. Nas saídas, postava-se ao pé da rampa de acesso à rua. E acenava-me com um sorriso largo, sincero, amigo. Vestia o mesmo uniforme azul e, por muito tempo, anos até, comunica-mo-nos por estes pequenos gestos diários compartilhados à distância, nos poucos minutos em que eu permanecia na meia luz do subsolo. Incontáveis as vezes em que estava preocupada e séria, ou mesmo distraída, e fui tomada por aquele aceno acompanhado de um sorriso luminoso e acolhedor. Até que um dia, ele se aproximou. Ainda não compreendo porque tive medo. Se foi porque ele era Apolo em sua carruagem anunciando o dia em mil raios de luz e vida, um deus que não se podia macular em sua epifania ou por outro motivo qualquer. Ele chegou bem perto e disse: só para dizer que você tem um sorriso muito bonito. Agradeci sem jeito. E nunca tive a oportunidade de dizer-lhe que era um reflexo da luz que me oferecia assim, tão gratuitamente, todos os dias. Perdi a vaga no estacionamento e ele, provavelmente, mudou de emprego. Deve ter ido iluminar outros becos em que burocratas trancafiados em seus automóveis blindados mal percebem a rua, os deuses e os pequenos milagres cotidianos

domingo, maio 21, 2006

A Saída Estética

Penso que nunca fui realista ingênua. Lembro-me de criança. O quarto era o mundo, as ações rotineiras do meu pai, a segurança, e o jardim, o refúgio paradisíaco. Dona Maria Marcos, a professora de matemática, rezava pai-nossos antes de começar as aulas. Sua voz áspera, sua aparência pesada e agressiva já atrapalhavam minha necessidade de crer nela: dois mais dois dariam sempre quatro, sem reclames. Isso não podia ser verdade. Não é de se admirar, portanto, que sempre estivesse ligada, de alguma forma, às experiências estéticas. As que não se pode explicar. As que recriam realidades, fazem releituras de mundo (por qual motivo envolvi-me com a história e com as aspirações acadêmico-científicas de objetividade? sabe-se lá). Desenho, pintura, teatro, dança. Os rituais das organizações filosóficas que participei na adolescência conferiram-me, por sua vez, um sentido sagrado com ares de mistério. Sempre gostei de vê-los por dentro, com um olhar oculto, centrado em outros tempos, outros mundos. Nada de realidades, portanto. É. Um certo temperamento esquizóide (mãos e pés gelados, necessidade de aterramento físico). Já adulta, em momentos difíceis, são deuses que se levantam e apresentam mitos, heróis. Épicos, trágicos. Os que me trazem o ato catártico, fazem-me perceber a finitude e me ajudam a suportar o caos cotidiano das realidades trazidas pelos jornais, pelas circunstâncias todas. Socorro. Mais do que nunca, preciso de lirismo, de poesia, de romance, de teatro e de gente doida.

terça-feira, maio 16, 2006

Da Esperança

"O que eu penso não é importante. A única frase que quero defender sem nenhuma restrição é que os seres humanos não podem viver sem esperança".

Do filósofo hermeneuta, Hans-Georg Gadamer, antes de morrer, aos 102 anos.

quarta-feira, maio 03, 2006

Punk Rock Não é só Pro seu Namorado!

É o que está escrito na capa do fichário de escola de minha filha adolescente depois que deixou a fase gótico-metal e adotou o estilo punk-rock. Aliás, quando ouço os sons guturais das bandas independentes que ela escuta agora e me lembro dos anteriores, os do tal metal melódico, fico com a certeza de que eu era feliz e não sabia. Contra o sistema e contra o machismo. Marxista e feminista. As más línguas, que hoje me alcunham de culturalista, diriam que joguei pedras na cruz de Cristo. Questão cármica. Devo merecer. Mas, vamos ao punk rock que não é só pro seu namorado, é pra você também. Nele, as mulheres comandam, tipo, tem os mesmos direitos dos homens, saca? Aborto? legalizar, claro. Questão de direitos. E Don’t cry for boys, they are stupid, também está escrito na mochila. Fico em silêncio, até onde posso, observando tudo. Tentando não alimentar a atitude: se seus pais têm alguma opinião a respeito, contrarie, eles estão sempre errados. Mas, aqui, neste espaço, posso dizer. O blog é meu e escrevo o que quero. Sim, ela precisa flexibilizar. Não falo dos direitos femininos conquistados a duras penas e blá blá blá, nem das injustiças sociais e coisa e tal. Falo sobre os excessos. Penso que teria dificuldades em defender o aborto legal. Votaria filosoficamente contra, questão espiritual pessoal. Agora, Deus, como demorei para admitir e reconhecer minha natureza feminina. Na plenitude do ser mulher e orgulhar-me disso. De gostar até de ficar menstruada e de tolerar a tal TPM. E de integrar, com prazer, todos os atributos dessa essência: a prudência, a espera, as características de amor, acolhimento e cuidados que vêm da mãe. De desejar e apreciar a presença masculina em sua diversidade: a pegada, a proteção, a iniciativa (lindo ver como eles acham que podem resolver tudo sózinhos e são tão frágeis, não é?). Pra não dizer dos aspectos sexuais. Sim, fazer sexo integrando as duas naturezas é, algo, efetivamente...divino. A natureza é sábia, não tenho dúvidas. Como as mulheres dos relevos de Pompéia, já enterrei o meu falo, aos quarenta. E, embora, esteja sozinha, e acredite na igualdade de direitos e sonhe com sociedades utópicas, ainda prefiro ouvir música acompanhada. Um dia ela vai entender, assim espero.