terça-feira, novembro 23, 2004

Bom Humor

Vivo numa conjuntura diária difícil e complicada (tenho preguiça de explicar), mas tenho sobrevivido (não sem muitos arranhões, é certo). Nela, aprendi a valorizar a atitude de algumas pessoas muito próximas. Quando a coisa tá feia mesmo e tudo parece triste e sem saída. Há os que fazem de um simples ato, uma façanha hercúlea e desgastante. De uma pequena dificuldade, uma montanha de reclamações e obstáculos. Há outros, entretanto, que não estão focados nos medos (reais e imaginários), nas portas temporariamente fechadas, nas pressões advindas de todos os lados. Andam assim, distraídos, sem levar tudo muito a sério, bolando alternativas pouco ortodoxas, rindo até do que é pra chorar e caminhando, sempre. Esses são os melhores companheiros de jornada. A você Vinícius, que nunca lerá este post e que me faz acreditar no poder do bom humor, minha gratidão por mais este dia de resistência.
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Da Lygia:
Em seu estado puro, o senso de humor não é negro nem vermelho nem azul, mas tem as sete cores do arco-íris...não tem implicações de ordem ética, mas estética, o bem humorado é um esteta. Uma filosofia de vida?
Digamos, uma doce filosofia que nos permite vislumbrar uma certa graça nas coisas desengraçadas. Sem sarcasmo, que o sarcasmo é cruel...
A casa pegou fogo? O louco bem humorado dá uma volta em torno, tira o cigarro do bolso que não existe e acende o cachimbo numa brasa do fogão.
(In. A Disciplina do Amor)

sábado, novembro 20, 2004

Cristo em Aço*


A primeira vez que entrei na Igreja do meu bairro deparei-me com a escultura painel de Cristo Crucificado. Uma escultura monumental em estrutura metálica. A representação é dura, de uma aspereza ímpar. O material parece ter sido torturado para adaptar-se à forma. São cones, fragmentos de aço combinados para representar Jesus em sua hora final. Sentia uma dor fria ao olhar para ela. Podia ouvir as marteladas agressivas do escultor na matéria prima. Sentia a resistência do material, sua capacidade de cortar e ferir, sua temperatura ártica. Eu não sabia muito bem o que estava fazendo ali e mal conseguia fixar o olhar no painel do altar central. Meu coração estava pesado e aquela figuração não o acolhia. Havia desconforto. Era muito cedo e fazia frio. Sentei-me num banco discreto e esperei para ouvir palavras que não compreendia. Num instante, uma senhora abordou-me: queria que eu lesse um salmo. Ofereceu-me rápidas explicações e desapareceu. Subi ao altar, ao lado do Cristo em aço torturado e, um pouco tonta, li o salmo num só fôlego. Eu não sabia que deveria dar pausas para que as pessoas repetissem a frase principal. Apesar do erro, não fui repreendida. Ficaram todos em silêncio e o ritual seguiu seu curso. Sentei-me novamente e mantive-me com a cabeça baixa. A fala do sacerdote parecia estar numa língua desconhecida. Eu não conseguia pensar, racionalizar, inferir alguma lógica em tudo aquilo. Só nós existíamos: eu, meu coração pesado e um Cristo torturado em aço. Aos poucos, a dor foi se transferindo para minha garganta e saltou-me aos olhos. Assim, com a visão turva o Cristo me parecia envolto em nuvens e flutuava num universo de cimento e metal. Acho que naquele momento pude compreender a dor do sacrifício, aceitá-lo, sentir-me próxima a Cristo. Esta sensação, de um consolo quase cúmplice, levou-me muitas vezes a este local. Eu leria o salmo em muitas outras ocasiões, usaria o púlpito para ler e comentar as escrituras, exploraria o altar com crianças e adolescentes para chamar a atenção para o mistério. Mas, o Cristo dilacerado estaria sempre lá, lembrando-me do sacrifício, incomodando-me com a sua dor, servindo-me de espelho para o enfrentamento e a aceitação de todas as feridas.
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*Painel Escultura do artista paulista Caciporé Torres instalado na Paróquia Nossa Senhora de Fátima em Goiânia.
O Como e o Porquê

Concepções racionalistas valorizam o real, as causas dos fenômenos.
Concluímos que o real é uma construção que possui muitas subjetividades: teórico-culturais, individuais e coletivas.
O passado é um campo de exercícios de anamnese para descobrir as causas reais na busca das origens.
Concluímos que a origem é elaborada a partir de nossas subjetividades. Mais uma construção.
Entretanto, é na elaboração que nos movemos. É a construção que imprime sentido às nossas vidas e pauta nossas ações. Conhecer nossas motivações e construções subjetivas é, portanto, mais útil do que buscar as causas, sempre inapreensíveis em sua complexidade.

Existem porquês, certamente. Mas é mais útil compreender o como.

Traduzindo: Se algo está dando errado na sua vida, larga mão de se lamentar e fazer perguntas. Tente descobrir o seu próprio manual de funcionamento e aperte alguns botões. Neste esforço, entre tentativas e erros, uma hora a coisa engrena.
O Pé de Manacá*

Das Dores é uma distinta senhora em que calculo cinqüenta e poucos anos. Na última aula, trouxe-me um pequeno ramalhete de Flores de Manacá que encheram a sala de perfume. Adorei o presente. Não só pelo carinho ou pelo significado da flor e da planta (associados, simbolicamente, à morte e renascimento), mas pela história que havia me relatado no encontro anterior. Explico.
Das Dores andava triste, queria desistir do curso, estava com problemas familiares relacionados a um tio doente que acolheu na própria casa, chegava sempre atrasada nas aulas, os olhos fundos, aérea nas discussões. Na sessão de orientação, contou-me o caso, e, diante da minha recusa em aceitar as conseqüências dessa difícil conjuntura, perguntou-me se poderia realizar o trabalho final a partir de uma narrativa pessoal. Adiantou-me que quando era criança, em Formosa, interior de Goiás, vivia junto à avó, uma mulher sábia e carinhosa. Vó Leonora era uma mulher excepcional. Das Dores contava com ela para responder as perguntas mais difíceis, aconselhar em casos complicados, e ouvir histórias, muitas histórias. Este relacionamento, que durou toda primeira infância de Das Dores, tinha como palco, o grande quintal da casa de D. Leonora, num local específico: embaixo de um gracioso Pé de Manacá. Ali, acomodadas em pequenas banquetas, avó e neta viveram muitas emoções. D. Leonora falava sobre tudo, sobre a vida, a natureza, as formigas, coisas grandes e ínfimas. Um dia, D. Leonora ficou doente e veio a falecer. Das Dores sentiu faltar-lhe o chão. Não poderia ser verdade, custou a acreditar, queria ver com os próprios olhos. Por sua tenra idade, a família não permitiu que chegasse perto do corpo tão querido da Avó. Sua mãe preparava-lhe a mortalha de cor violeta e costurava um travesseiro. Foi quando Das Dores lembrou-se do Pé de Manacá. Colheu então galhos e flores e os ofereceu à mãe para que enchesse a almofada que ficaria sob a cabeça de Vó Leonora.
Passaram-se muitos anos. Das Dores completou quarenta anos e descobriu que estava com câncer no útero em estado avançado. Reuniu os filhos, inclusive a menor, de apenas cinco anos, e explicou que poderia não sair viva do hospital onde realizaria uma operação para a retirada do tumor. Distribuiu responsabilidades, tentou ser forte, não se vitimizar, pediu-lhes que cuidassem uns dos outros. Eis que depois de alguns dias, no centro cirúrgico, após a intervenção, Das Dores encontra-se na mais completa solidão. Sente frio e abandono. A fragilidade dos que estão doentes sob a ação da pesada mão do destino. Nua diante de Deus e dos homens Das Dores fecha os olhos e vê um pé de Manacá. Sente-lhe o perfume, e, num acolhimento sem igual, uma mão que desliza suave sobre sua cabeça.
Das Dores sobreviveu. Está quase terminando o curso de especialização. Viva novamente evoca a história para ter forças e continuar. Em seu trabalho final, a partir de si mesma, falará de Formosa dos anos do Estado Novo, dos costumes interioranos, dos laços familiares e da vida cotidiana. Com ela aprendo novos métodos de escrever a história e absorvo feliz sua sabedoria dos recomeços.

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*O manacá-da-serra (Tibouchina mutabilis) é uma árvore originária do Brasil e em estado nativo pode ser facilmente encontrada na região da Mata Atlântica.Floresce normalmente duas vezes por ano. Entre o final do verão e o início do outono e na parte final da primavera. O interessante é observar que suas flores ao abrirem são brancas e, com o passar do tempo, gradativamente vão mudando de cor até ficarem praticamente roxas. O manacá-da-serra é uma planta pioneira, isto é, é uma das primeiras que aparece naturalmente após a derrubada da mata ou em áreas em processo de regeneração florestal. Devido a essa característica ela é de fácil cultivo e não é exigente. Praticamente não é atacada por pragas e doenças, não é muito exigente quanto à fertilidade do solo. Gosta de umidade atmosférica alta, clima quente, solo bem drenado. É de sol pleno. Há espécies de borboleta que só conseguem completar seu ciclo de transformação ao se alimentarem de manacá.