sexta-feira, maio 30, 2008

Salgadas e Puras

Há tempos assim, estéreis de palavras. Em outros, entretanto, elas nos chegam como dádivas, lampejos de esperança. Aqui, em um texto curto e engenhoso de minha filha, a reflexão sobre a inexorabilidade do destino, sobre o amor e a morte e, ainda, instantes de beleza em momentos únicos.

Salgadas e Puras

Maria Clara Capel

“Você vai morrer num lugar com água”, foram suas últimas palavras antes que a sessão terminasse. Estupefato, não desprendia meus olhos de sua face, esperando, esperançosamente, que ela dissesse mais algumas palavras. Talvez, só uma, uma bastaria. Água suja? Água de esgoto? Isso sim me previniria. Mas água? Logo água? “Dona, você tem certeza?” perguntei-lhe em tom de súplica, e logo completei: “Sou nadador, entro sempre na água. Como é que eu vou conseguir entrar na piscina novamente sabendo que posso morrer?! Olhos frios, ela disse apenas:“Água, água salgada e pura”.
Entreguei o dinheiro e voltei para casa pensando no que poderia significar água salgada e pura, características aparentemente tão contrárias. A antítese martelava em minha cabeça quando, ainda meio tonto, abri a porta de casa. Minha esposa veio até mim, permitindo-me um rápido beijo e me puxando pela mão. Não entendi o alvoroço, mas a segui até o quarto, onde revistas se espalhavam por todo o carpete, algumas abertas e marcadas.
“Decidi onde vamos passar as férias”, ela exclamou sorrindo. Perguntei-lhe aonde, e ela apenas estendeu uma das revistas. Talvez tenha ficado ali apenas dois minutos, mas pareceram-me décadas, admirando as “Ilhas do Sol, onde você escolhe entre as águas do mar, ou os lagos da maior pureza”. Sim, ali estava a resposta, um lugar de águas salgadas e lagos puros. Olhava a página como um homem olha o seu próprio caixão.
Se não fui? Sim. De início relutei. Tentei convencê-la de outro lugar. Mas ela não aceitava, me acusava de frieza e ausência. Por fim cedi, pois que o destino decidisse, afinal, não foi fugindo que Édipo conseguiu rompê-lo.
Chegamos à ilha no fim da tarde, e o quarto de hotel ainda estava ocupado. Resolvemos dar uma volta e conhecer a praia sem compromissos. De mãos dadas andávamos descalços pisando na areia fofa, enquanto o sol e sua luz fraca, mas acolhedora, nos iluminava a cabeça. Virei-me e olhei-a. Ela chorava. Emocionada, não resistia ao sol e me abraçava. Lágrimas salgadas e ao mesmo tempo tão puras, transformaram minha antítese num paradoxo, e sim, matavam-me, e reviviam-me após aquele momento.