terça-feira, dezembro 25, 2012

Gerúndio Jazz


Agora mesmo algum maluco
deve estar postando qualquer treco
genial na internet,
alguém deve estar pensando
em como melhorar aquele texto
enquanto lota o Especial
de vinagrete, perseguindo
obstinadamente um acorde
voltando da padaria.
Agora mesmo alguém
pode estar pensando
que guardamos só pra gente
o lado ruim das coisas lindas –
assim, trancafiado a sete chaves
de carinho – Alguém
pode estar sentindo tudo ao mesmo tempo
sozinho, assim brutalmente
sentimental, feito coubesse
toda a dignidade humana
num abraço tímido.
Agora mesmo alguém deve estar limpando
cuidadosamente o CD com a camisa,
pulando a ponta do pão pullman,
sentindo o baque da privada gelada,
perguntando quanto está o metro
daquela corda de nylon, trepando
no carro, empurrando o filho
no balanço com uma das mãos
e na outra equilibrando
a lata e o cigarro – Agora mesmo
alguém deve estar voltando,
alguém deve estar indo,
alguém deve estar gritando feito um louco
para um outro alguém
que nem deve estar ouvindo.
Agora mesmo alguém
pode estar encontrando sem querer
o que há muito já nem era procurado,
alguém, no quinto sono,
deve estar virando para o outro lado;
alguém, agora mesmo, no café da manhã
deve estar pensando em outras coisas
enquanto a vista displicentemente lê
os ingredientes do Toddy.
(Marcelo Montenegro. Garagem Lírica. Annablume Editora)

sexta-feira, dezembro 14, 2012

Anônimo Vermeer




Contemplando a rua pela janela, eu era uma melancólica mulher de Dali. Mas você me trazia tangerinas maduras e algo se acendia. Uma luz oblíqua e suave penetrava na sala e cantos escuros se iluminavam em tons flamengos. Perguntei-lhe, agradecida, se não iria me dar um beijo. Sem visualizar seu rosto, tudo era carinho e dádiva quando se despediu.

quarta-feira, novembro 14, 2012

Passagens



VOUET, Simon.O Tempo, vencido pela Esperança, pelo Amor e pela Beleza, 1627
Museo del Prado



Entre idas e vindas da estação, nada alterava a cadência do tempo. Abri a bolsa para conferir o bilhete e lá estava a madalena do tempo perdido. Senti-lhe o gosto e por alguns instantes, compreendi a derrota de Cronos, sua submissão à beleza e ao amor.


                                      (para MC, que enche meus dias de esperança e beleza)

sábado, novembro 10, 2012

Tédio

Quanto trabalho Meu Deus...

segunda-feira, outubro 08, 2012

O Nascimento


O mar, a mais ininteligível das existências não humanas.
E aqui está a mulher, de pé na praia, o mais ininteligível dos seres vivos (...).

Às vezes o mar lhe opõe resistência puxando-a com força para trás,
mas então a proa da mulher avança um pouco mais dura e áspera.
E agora pisa na areia.
Sabe que está brilhando de água, e sal e sol. 

Mesmo que o esqueça daqui a uns minutos,
nunca poderá perder tudo isso.


Clarice Lispector

terça-feira, outubro 02, 2012

...



Quando sinto
no pescoço
um nó,
vem o vento
e me sopra
eu sou
pó.


B.Brasiliense

domingo, setembro 16, 2012

Pantocrator

Cristo Pantocrator com duas faces, a divina e a humana.
 Monastério de Sta Catarina, Monte Sinai.

É sempre impactante encontrá-lo nas primeiras horas da manhã. Com o seus cabelos longos, o jovem caminha por entre os carros e lança um olhar inquiridor que atravessa o vidro e a indiferença dos que aguardam na fila pelo sinal verde. Sua expressão é daqueles que já não fazem mais parte desse mundo, a mesma que vemos nos que estão na antesala da morte, para além da vida. Sobre um de seus ombros pende um cobertor surrado que ele ajeitou à moda das vestimentas antigas: um manto que cobre parte de suas roupas rasgadas e que ele segura com uma das mãos como se fosse um senador romano. A outra ele movimenta como um mudra que perfaz o gesto da bênção dos ícones antigos: seus dedos ora se unem na indicação trinitária que abençoa e materializa os mistérios do céu e da terra, ora se espalmam no gesto da súplica pela esmola. Seu olhar não implora, mas solicita com legítima autoridade e nos culpabiliza pelo que nem sabemos nominar. Algo entre a omissão social e a podridão egoísta de nossa natureza humana e bestial. Nosso Pantocrator diário tem a resistência do ícone que personifica: já o vimos em outras esquinas, com as mesmas mãos sobre a boca, segurando um plástico com algo que ele aspira com sofreguidão. Já o surpreendemos em uma corrida, de banho tomado, atravessando as ruas como um atleta que se prepara para um festival olímpico. Mas ele sempre comparece no horário sagrado das manhãs. E embora mantenhamos a distância por entre o vidro fechado do carro, ele nos acompanha e continua conosco pelo resto do dia.

sexta-feira, setembro 07, 2012

domingo, julho 01, 2012

Um dia virá



E um dia virá, sim, um dia virá em mim a capacidade tão vermelha e afirmativa quanto clara e suave, um dia o que eu fizer será cegamente, seguramente, inconscientemente, pisando em mim, na minha verdade, tão integralmente lançada no que fizer que serei incapaz de falar, sobretudo um dia virá em que todo meu movimento será criação, nascimento. Eu romperei todos os nãos que existem dentro de mim, provarei a mim mesma que nada há a temer, que tudo o que eu for será sempre onde haja uma mulher com meu princípio, erguerei dentro de mim o que sou um dia, a um gesto meu minhas vagas se levantarão poderosas, água pura submergindo a dúvida, a consciência, eu serei forte como a alma de um animal e quando eu falar serão palavras não pensadas e lentas, não levemente sentidas, não cheias de vontade de humanidade, não o passado corroendo o futuro! O que eu disser soará fatal e inteiro. Não haverá nenhum espaço dentro de mim para eu saber que existe o tempo, os homens, as dimensões, não haverá nenhum espaço dentro de mim para notar sequer que estarei criando instante por instante, não instante por instante; sempre fundido, porque então viverei, só então serei maior que na infância, serei brutal e mal feita como uma pedra, serei leve e vaga como o que se sente e não se entende, me ultrapassarei em ondas. Ah, Deus, e que tudo venha e caia sobre mim, até a compreensão de mim mesma em certos momentos brancos porque basta me cumprir e então nada impedirá o meu caminho até a morte sem medo de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo.
LISPECTOR, Clarice. Perto do Coração Selvagem.

terça-feira, maio 08, 2012

Dia mais que especial


Maria Clara, meu presente de maio.

segunda-feira, abril 30, 2012

Miragem

In Illo Tempore/1994. Ana Maria Pacheco

Aquela criança, aquela
ainda não compreendeu o mundo
ainda se busca no espelho
 ainda inventa viagens
 ainda ri sem motivo
-- quando os fantasmas deixam

Aquela criança, aquela
 teve as asas cortadas
 e a máscara afivelada
 na morte de seus amores.

Aprendeu que o tempo
 -- como tudo o mais--
é só miragem.

Lya Luft. Histórias do Tempo.

sexta-feira, março 09, 2012



Nino
 Foto L. F. Garibaldi

às vezes te nino
menina, miau
no teu colo céu
uau, menino eu

(L.C.)

segunda-feira, janeiro 16, 2012

Da ausência

NO QUINTAL DA LUA
Maria Luisa Ribeiro


E  impõe se a dor
com suas pegadas de chumbo
seus resquícios de gorjeios
e  um calhamaço de silêncio
que machuca além da conta.


Estúpida,
com seu chapéu de violetas densas
e um cravo de chorar no vão do peito,
ela vai dançando o canto gregoriano
em um espaço oco
que aprendemos a chamar de saudade


E quando tudo se cala
apenas o  pio de um pássaro ancorado em um graveto  seco 
e um pingo de chuva estatelado na vidraça
de uma cobertura no aeroporto da cidade.


Calou-se o brado de Espanha...
e cá do meu batente de anjo caído e torto
eu olho pra cima e te contemplo.
Sóbria , sem desespero  e sem  dores miúdas
um pássaro... um pio... e...  junto –me a ti 
num canto de Bocelli no quintal da lua.


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Presente de minha amiga escritora Maria Luisa Ribeiro, por ocasião da morte de meu pai, há doze dias. 
Fica aqui minha gratidão a ela e a homenagem a ele, afinal. Por enquanto, não tenho mais palavras.