sexta-feira, outubro 18, 2013

Ventania

Ventania. Antônio Parreiras. 1888 / 150 x 100 m


No Mar do Tempo

Desde o princípio
escorro vísceras adentro.
Canto, faço silêncio,
viva me surpreendo.

Vela estreita me abriga
e pequena concha
              no mar do tempo

Corpo e alma
(pesam ainda)
nas asas do primeiro vento.
            ...
(Sônia Maria Santos)

domingo, agosto 04, 2013

Sherman, Untitled Film Still #48
Cindy Sherman. Utitled Film Still #48
Autotomia

Diante do perigo, a holotúria se divide em duas:
deixando uma sua metade ser devorada pelo mundo,
salvando-se com a outra metade.

Ela se bifurca subitamente em naufrágio e salvação,
em resgate e promessa, no que foi e no que será.

No centro do seu corpo irrompe um precipício
de duas bordas que se tornam estranhas uma à outra.

Sobre uma das bordas, a morte, sobre outra, a vida.
Aqui o desespero, ali a coragem.

Se há balança, nenhum prato pesa mais que o outro.
Se há justiça, ei-la aqui.

Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.
Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou.

Nós também sabemos nos dividir, é verdade.
Mas apenas em corpo e sussurros partidos.
Em corpo e poesia.

Aqui a garganta, do outro lado, o riso,
leve, logo abafado.

Aqui o coração pesado, ali o Não Morrer Demais,
três pequenas palavras que são as três plumas de um vôo.

O abismo não nos divide.
O abismo nos cerca.

...
(Wislawa Szymborska)

domingo, julho 28, 2013



Elogio dos Sonhos


Nos sonhos
eu pinto como Vermeer van Delft.

Falo grego fluente 
e não só com os vivos.

Dirijo um carro 
que me obedece.

Tenho talento,
escrevo grandes poemas.

Escuto vozes
não menos que os mais veneráveis santos.

Vocês se espantariam 
com minha performance ao piano.

Flutuo no ar como se deve 
isto é, sozinha.

Ao cair do telhado
desço de manso na relva.

Respiro sem problema 
debaixo d'água.

Não reclamo:
consegui descobrir a Atlântida.

Fico feliz de sempre poder acordar 
pouco antes de morrer.

Assim que começa a guerra 
me viro do melhor lado.

Sou, mas não tenho que ser 
filha da minha época.

Faz alguns anos 
vi dois sóis.

E anteontem um pinguim. 
Com toda a clareza.


...
(WISLAWA SZYMBORSKA)

quarta-feira, janeiro 16, 2013

Paradoxos da (Des)existência



Eu só ando por dentro de mim; se fui em outro lugar foi pra me ver. Não saio de dentro de mim nem pra pescar. Ando mais por dentro de mim do que na estrada. Passarinhos existem para dar movimento ao entardecer. Eu me recolho no abandono para ser livre. Desenharam nas pedras meu silêncio. Uma árvore que eu vi dava borboleta em vez de flor. Só o cinzento de uma tarde me amanhece. Mexer com gratuidades me enriquece. Manoel de Barros. Em Espelunca

terça-feira, dezembro 25, 2012

Gerúndio Jazz


Agora mesmo algum maluco
deve estar postando qualquer treco
genial na internet,
alguém deve estar pensando
em como melhorar aquele texto
enquanto lota o Especial
de vinagrete, perseguindo
obstinadamente um acorde
voltando da padaria.
Agora mesmo alguém
pode estar pensando
que guardamos só pra gente
o lado ruim das coisas lindas –
assim, trancafiado a sete chaves
de carinho – Alguém
pode estar sentindo tudo ao mesmo tempo
sozinho, assim brutalmente
sentimental, feito coubesse
toda a dignidade humana
num abraço tímido.
Agora mesmo alguém deve estar limpando
cuidadosamente o CD com a camisa,
pulando a ponta do pão pullman,
sentindo o baque da privada gelada,
perguntando quanto está o metro
daquela corda de nylon, trepando
no carro, empurrando o filho
no balanço com uma das mãos
e na outra equilibrando
a lata e o cigarro – Agora mesmo
alguém deve estar voltando,
alguém deve estar indo,
alguém deve estar gritando feito um louco
para um outro alguém
que nem deve estar ouvindo.
Agora mesmo alguém
pode estar encontrando sem querer
o que há muito já nem era procurado,
alguém, no quinto sono,
deve estar virando para o outro lado;
alguém, agora mesmo, no café da manhã
deve estar pensando em outras coisas
enquanto a vista displicentemente lê
os ingredientes do Toddy.
(Marcelo Montenegro. Garagem Lírica. Annablume Editora)

sexta-feira, dezembro 14, 2012

Anônimo Vermeer




Contemplando a rua pela janela, eu era uma melancólica mulher de Dali. Mas você me trazia tangerinas maduras e algo se acendia. Uma luz oblíqua e suave penetrava na sala e cantos escuros se iluminavam em tons flamengos. Perguntei-lhe, agradecida, se não iria me dar um beijo. Sem visualizar seu rosto, tudo era carinho e dádiva quando se despediu.

quarta-feira, novembro 14, 2012

Passagens



VOUET, Simon.O Tempo, vencido pela Esperança, pelo Amor e pela Beleza, 1627
Museo del Prado



Entre idas e vindas da estação, nada alterava a cadência do tempo. Abri a bolsa para conferir o bilhete e lá estava a madalena do tempo perdido. Senti-lhe o gosto e por alguns instantes, compreendi a derrota de Cronos, sua submissão à beleza e ao amor.


                                      (para MC, que enche meus dias de esperança e beleza)

sábado, novembro 10, 2012

Tédio

Quanto trabalho Meu Deus...

segunda-feira, outubro 08, 2012

O Nascimento


O mar, a mais ininteligível das existências não humanas.
E aqui está a mulher, de pé na praia, o mais ininteligível dos seres vivos (...).

Às vezes o mar lhe opõe resistência puxando-a com força para trás,
mas então a proa da mulher avança um pouco mais dura e áspera.
E agora pisa na areia.
Sabe que está brilhando de água, e sal e sol. 

Mesmo que o esqueça daqui a uns minutos,
nunca poderá perder tudo isso.


Clarice Lispector

terça-feira, outubro 02, 2012

...



Quando sinto
no pescoço
um nó,
vem o vento
e me sopra
eu sou
pó.


B.Brasiliense

domingo, setembro 16, 2012

Pantocrator

Cristo Pantocrator com duas faces, a divina e a humana.
 Monastério de Sta Catarina, Monte Sinai.

É sempre impactante encontrá-lo nas primeiras horas da manhã. Com o seus cabelos longos, o jovem caminha por entre os carros e lança um olhar inquiridor que atravessa o vidro e a indiferença dos que aguardam na fila pelo sinal verde. Sua expressão é daqueles que já não fazem mais parte desse mundo, a mesma que vemos nos que estão na antesala da morte, para além da vida. Sobre um de seus ombros pende um cobertor surrado que ele ajeitou à moda das vestimentas antigas: um manto que cobre parte de suas roupas rasgadas e que ele segura com uma das mãos como se fosse um senador romano. A outra ele movimenta como um mudra que perfaz o gesto da bênção dos ícones antigos: seus dedos ora se unem na indicação trinitária que abençoa e materializa os mistérios do céu e da terra, ora se espalmam no gesto da súplica pela esmola. Seu olhar não implora, mas solicita com legítima autoridade e nos culpabiliza pelo que nem sabemos nominar. Algo entre a omissão social e a podridão egoísta de nossa natureza humana e bestial. Nosso Pantocrator diário tem a resistência do ícone que personifica: já o vimos em outras esquinas, com as mesmas mãos sobre a boca, segurando um plástico com algo que ele aspira com sofreguidão. Já o surpreendemos em uma corrida, de banho tomado, atravessando as ruas como um atleta que se prepara para um festival olímpico. Mas ele sempre comparece no horário sagrado das manhãs. E embora mantenhamos a distância por entre o vidro fechado do carro, ele nos acompanha e continua conosco pelo resto do dia.

sexta-feira, setembro 07, 2012

domingo, julho 01, 2012

Um dia virá



E um dia virá, sim, um dia virá em mim a capacidade tão vermelha e afirmativa quanto clara e suave, um dia o que eu fizer será cegamente, seguramente, inconscientemente, pisando em mim, na minha verdade, tão integralmente lançada no que fizer que serei incapaz de falar, sobretudo um dia virá em que todo meu movimento será criação, nascimento. Eu romperei todos os nãos que existem dentro de mim, provarei a mim mesma que nada há a temer, que tudo o que eu for será sempre onde haja uma mulher com meu princípio, erguerei dentro de mim o que sou um dia, a um gesto meu minhas vagas se levantarão poderosas, água pura submergindo a dúvida, a consciência, eu serei forte como a alma de um animal e quando eu falar serão palavras não pensadas e lentas, não levemente sentidas, não cheias de vontade de humanidade, não o passado corroendo o futuro! O que eu disser soará fatal e inteiro. Não haverá nenhum espaço dentro de mim para eu saber que existe o tempo, os homens, as dimensões, não haverá nenhum espaço dentro de mim para notar sequer que estarei criando instante por instante, não instante por instante; sempre fundido, porque então viverei, só então serei maior que na infância, serei brutal e mal feita como uma pedra, serei leve e vaga como o que se sente e não se entende, me ultrapassarei em ondas. Ah, Deus, e que tudo venha e caia sobre mim, até a compreensão de mim mesma em certos momentos brancos porque basta me cumprir e então nada impedirá o meu caminho até a morte sem medo de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo.
LISPECTOR, Clarice. Perto do Coração Selvagem.

terça-feira, maio 08, 2012

Dia mais que especial


Maria Clara, meu presente de maio.

segunda-feira, abril 30, 2012

Miragem

In Illo Tempore/1994. Ana Maria Pacheco

Aquela criança, aquela
ainda não compreendeu o mundo
ainda se busca no espelho
 ainda inventa viagens
 ainda ri sem motivo
-- quando os fantasmas deixam

Aquela criança, aquela
 teve as asas cortadas
 e a máscara afivelada
 na morte de seus amores.

Aprendeu que o tempo
 -- como tudo o mais--
é só miragem.

Lya Luft. Histórias do Tempo.

sexta-feira, março 09, 2012



Nino
 Foto L. F. Garibaldi

às vezes te nino
menina, miau
no teu colo céu
uau, menino eu

(L.C.)

segunda-feira, janeiro 16, 2012

Da ausência

NO QUINTAL DA LUA
Maria Luisa Ribeiro


E  impõe se a dor
com suas pegadas de chumbo
seus resquícios de gorjeios
e  um calhamaço de silêncio
que machuca além da conta.


Estúpida,
com seu chapéu de violetas densas
e um cravo de chorar no vão do peito,
ela vai dançando o canto gregoriano
em um espaço oco
que aprendemos a chamar de saudade


E quando tudo se cala
apenas o  pio de um pássaro ancorado em um graveto  seco 
e um pingo de chuva estatelado na vidraça
de uma cobertura no aeroporto da cidade.


Calou-se o brado de Espanha...
e cá do meu batente de anjo caído e torto
eu olho pra cima e te contemplo.
Sóbria , sem desespero  e sem  dores miúdas
um pássaro... um pio... e...  junto –me a ti 
num canto de Bocelli no quintal da lua.


*********************
Presente de minha amiga escritora Maria Luisa Ribeiro, por ocasião da morte de meu pai, há doze dias. 
Fica aqui minha gratidão a ela e a homenagem a ele, afinal. Por enquanto, não tenho mais palavras.

sexta-feira, dezembro 02, 2011

Da presença

Danielle Huillet e J.M. Straub

“O cinema consiste em surpreender uma coisa que não mais se repetirá”.
J.M.Straub.

domingo, novembro 27, 2011

"A Nave Fantasma"

Yoko e Lennon - créditos

Como termina um amor? - O quê? Termina? Em suma  ninguém - exceto os outros - sabe disso; uma espécie de inocência mascara o fim dessa coisa concebida, afirmada, vivida como se fosse eterna. O que quer que se torne objeto amado, quer ele desapareça ou passe à região da amizade, de qualquer maneira, eu não o vejo nem mesmo se dissipar: o amor que termina se afasta para um outro mundo como uma nave espacial que deixa de piscar: o ser amado ressoava como um clamor, de repente, ei-lo sem brilho (o outro nunca desaparece como se esperava). Esse fenômeno resulta de uma imposição do discurso amoroso: eu mesmo (sujeito enamorado) não posso construir até o fim minha história de amor: sou o poeta (recitante) apenas do começo; o final dessa história, assim como minha própria morte, pertence aos outros; eles que escrevam o romance, narrativa exterior, mítica. (Roland Barthes. Fragmentos de um Discurso Amoroso).  

segunda-feira, novembro 21, 2011

Vivo em Goi


Leonardo Lobo

FUTURARTES

meu futuro está nas artes
meu futuro está presente
e eu estou desferrolhado
(...)
assim como na dor
é dever gargalhar
como assim no azedume
é dever amar
e na falta de amor
armar, inventar
inverter
(...)
eu quero mesmo isso aqui?
é isso mesmo isso daí?
pelo que me cabe
talvez eu esteja
carente doente
dormente
quente

(Leonardo Carmo)

domingo, novembro 20, 2011

A Sagração





"Sonhei com um grande ritual pagão! Tive uma soberba visão
repleta dos mais inusitados efeitos  sonoros indefiníveis..."


Em três tempos sagra-se uma mulher à primavera. Ela parte de si. A música lhe chega como sedução leve, alento aos seus dias limitados em forma e construção de sentidos. Ela se entrega aos poucos, até que a música a tome, afinal. Ela se dá ao piano, aos sons, aos impulsos das forças anímicas que a colocam no limite entre os mundos humano e animal. Rastejante como um réptil, agressiva e armada como um tigre, ela se movimenta, dissonante, e agoniza. Ao fim deste ato, ela já está despida do que a limitava em espaços e formas. Desconstrói-se nos ímpetos entre ritmos e pausas. Timbres, percussões e ritmos acima da harmonia, transformam-na em uma noiva primitiva. Algo enfim, se define e costura uma trama. Como Ariadne em torno do labirinto, ela enlaça fios entre a razão e a loucura. Forças primitivas incontroláveis violentam o ato e a impelem à construção de uma geografia sagrada, gestos que se ritualizam na repetição e nos impulsos. Ao final, no colo do piano, ela se transmuta em uma massa informe, algo ainda não nascido, zoomórfico, um ser que ensaia um vôo frágil.

segunda-feira, outubro 24, 2011

quinta-feira, outubro 13, 2011

Supernovas


Supernova I

sou uma mulher que pulsa
um oco no fim da expiração
um lugar seguro
no quintal da infância
onde eu brincava só

sou um brincar que pulsa
um sopro no fim da expiração
um vôo no portal da infância
um quintal no fim
uma mulher só


Supernova II

sou um pulsar que brinca um oco no quintal
uma mulher na infância sou um vôo no fim
um oco no portal um quintal no fim um lugar
uma mulher um sopro um vôo sou um sopro
no fim uma mulher na infância um pulsar um
brincar um vôo sou só um sopro no fim só
um sopro que pulsa que brinca que voa

Supernova III

sou
um pulsar
que brinca
um oco
no quintal
uma mulher
na infância
um vôo
no fim

sou
um oco
no portal
um quintal
um lugar
um vôo
uma mulher
um quasar
um brincar

sou
um sopro
no fim
um vôo

quinta-feira, outubro 06, 2011

domingo, outubro 02, 2011

Psicopompo


Auguste Rodin.
Gênio do Repouso Eterno, 1899
Pinacoteca. Parque da Luz/SP

Penetra surdamente no reino das palavras...
Drummond. Estação da Luz/SP

Já não me importa ganhar coisas. Nem pessoas. Muito menos o mundo. Ver tudo da minha janela já me basta. Viajo por obrigação. Com objetivos definidos, datas e locais bem arranjados. Mas, faço sempre com má vontade, nunca sem tensão. Foi assim que cheguei pela primeira vez em São Paulo este ano. Cidade ambígua e silente. Sim, havia muito silêncio no murmúrio indefinido das ruas, nas conversas esparsas, no deslocamento rápido e ensimesmado de pessoas nos ônibus, nas estações de metrô. Tanto ruído, quanto silêncio. Éramos seres impessoais, encapsulados em pequenos mundos, personagens no enredo de um filme de ficção científica.
********
Da segunda vez, entretanto, algo diferente aconteceu. Hospedei-me em um lugar central, entre ruas escuras cheias de histórias noturnas. De repente, a São Paulo silente dos seres de plástico, soltava o corpo e a voz entre loucos carros e sussurros, no tilintar de copos em bares bêbados, no ranger de portas entreabertas das boites, no salto de mulheres que animam o vai e vem das esquinas, na súplica dos moradores das calçadas, no cochichar de combinações e segredos dos cantos obscuros.
********
Em meu temor forasteiro, encontrei um amigo. Assim, de forma meio inesperada, sem contabilizadas garantias, quase sem querer. De entrada, forneceu-me um cartão de metrô com passagens pagas para que eu não ficasse em filas. Indicou-me rotas facilitadas para que eu não me perdesse na imensidão das ruas. Pagou-me cafés. Enviou-me sms’s com msgs desconcertantes, do tipo: comeu? tá onde? te espero no bloqueio do metrô. Nos intervalos da obrigação, insistiu para que eu visitasse obras, jardins, exposições, experimentasse as frequentações do espírito. Segurou minha mão para me proteger, manter-me em equilíbrio no passo e no ritmo, sem saber que meu corpo-espírito ferido beirava a exaustão e o desalinho.
********
Aceitei tudo com dificuldade e parcimônia. Preciso de tempo para digerir dádivas. Neste transe iniciático, ele foi o instrutor, o guardião-guia no umbral desta dura travessia metonímica. Com percepção lenta para os milagres do instante, não me desculpei por não conseguir absorver de forma plena os valiosos presentes que recebi, assim, de maneira tão generosa, nem mesmo sei se soube agradecer a passagem, as entradas que me transportariam da república à estação da luz. Foram momentos de diálogo mudo, instantes em que as falas sem sentido e os corpos tristes das ruas se transformariam no reino das palavras e em esculturas e formas transmutadas em beleza e criação.
(para Leo)

domingo, setembro 04, 2011

Suave Coniunctio (ou Setembro)


seu amor é líquido
suave veludo que escorre
entre alfazemas e camomilas
*
meu amor é fogo
sol de dias frios
manhãs azuis
*
nosso amor é sopro
 aragens sutis
em que acordamos a terra
*
é dia frágil
quando ervas e aromas
brotam nos solos
em que nos encontramos claros
férteis e úmidos


sábado, setembro 03, 2011

Forum


Com pés descalços
caminho por esquinas
imponentes
da cidade fantasma
*
Revisito a
velha casa
vazia
na mesma
solidão das ruas
*
Em cima da mesa
empoeirada
uma carta
escrita à mão
com letras trêmulas
*
Pontifex maximus
evoca-me
a identidade do gesto
a dor que não sangra
o claustro
o ritmo
o passo

quinta-feira, junho 16, 2011

terça-feira, maio 24, 2011

Amores Captativos














O beijo de Judas (painel 31), Giotto, Capela Scrovegni, 1304-6

É impressionante como ao ler um mesmo texto, temos diferentes concepções de seu significado conforme o tempo em que o lemos. (Re)li, como se fosse a primeira vez, a análise do arquétipo de Judas no livro do Jean-Yves Leloup*. O autor discute nossas relações uns com os outros, em especial, quando estamos em idolatria, que é semelhante à paixão: quando pedimos o absoluto a um ser relativo. Quando este ser nos decepciona, entramos, naturalmente, no desespero. E ele segue com análises importantes. Conta-nos como Judas não consegue se colocar no meio na relação com o Mestre. Segundo o autor, precisamos aprender a tocar o outro no meio, entre sua dimensão humana e divina. Judas queria um líder político e não um homem que salvasse a poucos e se prestasse às calúnias e à morte. É por essa decepção que passa facilmente da idolatria ao desprezo. Ele esperava demais, com ilimitadas expectativas, e, paradoxalmente, com uma limitada visão das coisas. E é essa atitude que o faz vender e trair o Mestre. Depois do ato, Judas se enclausura na própria culpa e se envenena. Diferente de Pedro, que erra e se redime, pois é capaz da prática do perdão com o outro e, portanto, consigo próprio. Com a atitude típica de um suicida, Judas não crê no perdão e isso se volta contra ele. Ele era assim e por esse motivo, útil ao serviço da traição. Leloup nos lembra que a palavra doença, em hebraico, significa andar em círculos, estar preso em um círculo, estar fechado na conseqüência dos seus atos e do seu carma. Leloup nos recorda a incapacidade de perdoar, o excesso de expectativas e a avareza destes homens que, não souberam compreender Madalena, o arquétipo contrário a Judas. A que lavou os pés de Jesus com caros perfumes e foi por isso repreendida (seria mais útil “dar o dinheiro aos pobres”). Homens como Judas, que se prestaram ao serviço da traição, não souberam ver a generosidade de Madalena, a grandeza de seu abnegado gesto, que dava mais do que o que possuía, além de oferecer de si própria. Madalena é o arquétipo da generosidade e da entrega, incapaz de se realizar em homens presos nos sintomas de seu desespero, na ilusão e avareza das aparências, na idolatria que não concebe o respeito, o amor como algo que se coloca entre o humano e o divino. No arquétipo de Judas há alguma coisa deste estado de consciência que nos envenena, que envenena a existência. Como conclui o autor: em Madalena, vemos o arquétipo do amor oblativo e em Judas, o do amor captativo, tão bem expresso em Giotto na cena do beijo. Um gesto que tem a aparência de amor, mas é um gesto vazio.

Tai, agora entendi.

__________________

*Leloup, Jean-Yves. Caminhos de Realização. Dos Medos do Eu ao Mergulho no Ser. Ed. Vozes.

Caeiro e o Pasmo Essencial











nascido a cada momento
para a eterna novidade do mundo.

segunda-feira, maio 23, 2011

Evangelização Diária

Generosidade
Então, você cria galinhas?
Crio, tenho nove. Crio para matar.
Para matar? Mas, você não tem pena?
Só quando a faca tá cega e elas me olham.

Flexibilidade
Minha cunhada é uma pessoa boa,
Trabalhou em um caixa, mas, saiu. Suspeita de roubo.

Devoção
Esta prateleira ficará ótima lá em casa, vou tirar uma foto.
Mandarei fazer uma idêntica.
Quando for comprar aquele peixe, traga para mim.
Quero um igual.
Aquela massa de pastel é boa, compre-me uma.
Da mesma marca, viu?
Esse tempero é muito bom, vou levar.
Ficará como o que você fez outro dia, igual.
Esse batom é bonito, vou querer um.
Da mesma cor.

Obediência
Lave roupas pela manhã, por causa do sol.
(lavo todos os dias à tarde, e depois fecho as janelas para que sequem à sombra)
Não se esqueça de colocar água para o gato, chego tarde.
(a vasilha do gato permanece vazia até a hora que alguém chega para enchê-la, essa é minha regra)
Quando tirar os acessórios da pia do lugar, devolva-os para facilitar que eu os encontre.
(a saboneteira fica sempre escondida em cima da caixa do vaso sanitário após a arrumação, assim é melhor)

Oração de Intercessão Diária
(recitada em reação a qualquer tentativa de diálogo)
Tsc Tsc Tsc Tsc Tsc
Tsc Tsc Tsc Tsc Tsc

quinta-feira, maio 19, 2011

Metamorfoses


Metamorfoses de Narciso. Salvador Dali, 1937.

Em silhueta introspecta
dobro os olhos
sobre joelhos
ressequidos
encarquilhados
eu e meu duplo
torpor narcísico
olhos viciados em ver
ecos de morte e vida
águas paradas
em que me precipito
para ser pedra
ruína
flor

domingo, maio 08, 2011

A Rosa Meditativa

Rosa Meditativa. Salvador Dali

Foi o destino. Estava tudo programado e algo em mim sabia. Que seria difícil. Algo no ápice da intensidade: do medo, da dor, da alegria. Alguém estranho, mas, ao mesmo tempo, tão próximo: mesmo tipo sanguíneo, mesmo jeito de olhar, e, logo, os mesmos hábitos, gostos literários, a mesma paixão pelo silêncio, pela escrita, pela arte. Não sem alguma culpa, identifico-me, também, com algumas dificuldades (doloroso suspiro). Admiro-me por sua singularidade na sutileza e inteligência, por sua sabedoria nata e, suprema glória compartilhada: pela nossa compreensão mútua, sem palavras. Como naquele momento, há exatos dezenove anos, era o dia das mães. Ela era o meu presente: Maria Clara, minha Rosa Meditativa, sublime expressão de força, sabedoria e beleza. Nem Dali poderia interpretar esta florescência amorosa para além das raízes e dos frutos.

sábado, maio 07, 2011

Libertango


"trago a vida agora calma, um tango dentro d' alma"....

sexta-feira, abril 15, 2011

sexta-feira, abril 01, 2011

Aproveitar o Tempo

APOSTILA (11-4-1928)



Aproveitar o tempo!

Ah, deixem-me não aproveitar nada!

Nem tempo, nem ser, nem memórias de tempo ou de ser!...
Deixem-me ser uma folha de árvore, titilada por brisa,
A poeira de uma estrada involuntária e sozinha,
O vinco deixado na estrada pelas rodas enquanto não vêm outras,
O pião do garoto, que vai a parar,

E estremece, no mesmo movimento que o da terra,
E oscila, no mesmo movimento que o da alma,
E cai, como caem os deuses, no chão do Destino.


(Álvaro de Campos)

quinta-feira, janeiro 13, 2011

A Última Folha


"Subsistem folhas nas árvores, aqui e ali. E fico freqüentemente diante delas, pensativo. Contemplo uma folha e fixo nela minha esperança. Quando o vento brinca com ela, todo o meu ser treme. E se ela cai, que se pode fazer, minha esperança cai com ela.”

Para poder interrogar a sorte, é preciso uma pergunta alternativa (mal me quer/bem me quer), um objeto suscetível de uma variação simples (vai cair/não vai cair) e uma força exterior (divindade, acaso, vento) que marque um dos pólos da variação. Faço sempre a mesma pergunta (serei amado?), e essa pergunta é alternativa: tudo ou nada; não concebo que as coisas amadureçam, escapem às conveniências do desejo. Não sou dialético. A dialética diria: a folha não cairá, e depois ela cairá; mas enquanto isso você terá mudado e não fará mais a pergunta.

(ao consultar quem quer que seja, espero que me digam: “a pessoa que você ama também o ama e vai lhe dizer isso essa noite”).

A Última Folha. BARTHES, Roland. Fragmentos de Um Discurso Amoroso. RJ, Francisco Alves, 1989.p.146.

sexta-feira, novembro 26, 2010

Poema Sem Drama


Entre Lírios e Ausências



Na mesa da sala vejo lírios sem perfume.
Um encontro roubado, o cartão, genuíno?
A letra, um nome em desalinho.
Bulbos cerrados que nunca se abrirão.
Pólen que mancha toalhas, a roupa, o chão.
Estética estéril do amor carcomido.
Na pureza perdida, é de sangue o que enche a jarra de vidro.

sexta-feira, setembro 17, 2010

Primavera

Sandro Botticelli. Primavera. 1482, Têmpera sobre Madeira, 203 x 314 cm Florença, Galeria Ufizzi.

Obra de temática profana mitológica clássica, que com símbolos das divindades pagãs, apresenta-nos a chegada da estação que abre o círculo da vida e da sua renovação, ou seja, a primavera. Na concepção mitológica, Vênus, deusa do amor dos humanos e dos deuses, é a responsável pelo desejo da água, que tudo fecunda e renova. No quadro de Botticelli, Vênus aparece no centro da obra, mas não sendo a principal personagem da pintura. A deusa é representada de forma discreta, vestida. Vênus tem gestos nas mãos, e como uma madona parece abençoar o mundo. À sua cabeça, vemos Cupido, que com os olhos vendados, aponta a sua seta para a três Graças, que estão do lado esquerdo da deusa do amor. Quando descortinamos a obra a partir da figura de Aglaia , Tália e Eufrósine[1], as três Graças, Cárites ou Dons, é que começamos a encontrar sinais dos traços precisos da filosofia neoplatônica. As Graças surgem profanas, virginais, sensuais, trajando vestes transparentes, harmonizando a beleza das cores primaveris, pulsantes pela intervenção dos corpos humanos. Mais a esquerda do quadro está Mercúrio (Hermes), o mensageiro dos deuses, com suas sandálias aladas, trazendo uma túnica vermelha. Mercúrio dissipa as nuvens, rompe com o inverno, e traz o sol de primavera. Warburg associou esta pintura às festividades de maio na Corte dos Médici: o torneio de 1475, celebrado pelo poeta Poliziano, na qual se ilustrou Giuliano de Médici: a volta da paz, depois do fracasso da Conspiração dos Pazzi, que matou Giuliano e poupou Lourenço de Médici. Apesar disso, segundo o mitógrafo Jean Seznec,[2] há um ar longínquo, uma atmosfera quase irreal na obra: estamos num mundo que não parece ser o dos vivos e ali, os grandes enigmas da Natureza, da Morte e da Ressureição flutuam em volta das formas sonhadoras da Juventude, do Amor e da Beleza, fantasmas de um Olimpo ideal.

Quando voltamos para a direita de Vênus, vamos encontrar Flora, a deusa das florestas e das flores. Flora traja roupas floris, das roupas a deusa espalha as flores pelos campos. Flora é a única personagem da obra a olhar diretamente para o observador, como se fosse atirar as flores além daquela paisagem, atingindo todos os que contemplam a obra. À direita da obra surge Zéfiro, o vento do oeste. Zéfiro na mitologia é personificado como um vento agradável, uma brisa suave, é ele o mais suave de todos os ventos, o mensageiro da primavera. Zéfiro, retratado aqui como um ser esverdeado, enlaça a bela ninfa Clóris. Logo que Zéfiro a toca, flores perfumadas saem de sua boca e e ei-la transformada em Flora, a mensageira da renovação. Eu era Clóris e agora é que me chamam Flora, escreveu Ovídio em suas Metamorfoses.

Na mitologia romana Flora é a mulher de Zéfiro, na mitologia grega ela é identificada com Clóris, uma das Alseídas, ninfa das flores. Conta a lenda que Zéfiro viu Clóris num dia de primavera, apaixonou-se fulminantemente por ela, raptando-a. Do amor de Zéfiro e Clóris nasceu Carpo, o deus dos frutos. É no abraço (ou rapto) de Zéfiro a Clóris que começa a obra de Botticelli. As transformações e as progressões de Zéfiro a Clóris e deste a Flora exprimem, segundo Edgard Wind ( 1900 – 1971), a dialética neoplatônica do amor.

Para alguns, esta dialética faz nascer a beleza de uma discórdia entre a castidade e o amor. Clóris é a castidade e Zéfiro, o amor: sua união engendra a beleza primaveril que cobre a terra de flores. Mas, no Jardim de Vênus, segundo Jean Delumeau, conhecemos apenas a primeira metamorfose do amor. Avalia o autor que, de fato, por baixo de Vênus, um cupido alveja com a mão segura, apesar dos olhos vendados, uma das três graças que dançam à esquerda. A vítima é a a que figura no meio do grupo das três irmãs, a Castidade. A da direita, com o penteado adornado de pérolas é a Beleza, a da esquerda, a mais atraente, é a Volúpia. [3] A Castidade é, portanto, a iniciada no amor pelas duas companheiras com a proteção de Vênus que conduz a dança das Três Graças: uma dança que não evoca a sensualidade terrena, pois a Castidade vira as costas para o mundo e olha Mercúrio, o mensageiro e deus hermafrodita, o que tem nas vestes chamas invertidas, símbolos funerários (Mercúrio era o que iniciava os homens nos segredos de além-túmulo). Na primavera, Mercúrio aponta o dedo para o Céu, e expulsa para longe, com seu caduceu, as nuvens, os desejos carnais, para que possa revelar às almas a eleição e a beleza oculta nos mistérios divinos.

Portanto, a voluptuosidade à qual a Castidade é convidada, não é a da terra, a flecha que a atinge é a flecha do amor transcendente. Assim revela-se a significação neo-platônica da obra: o movimento geral do quadro deve ser lido da direita para a esquerda e não é por acaso que Zéfiro é simétrico a Mercúrio. O ritmo dialético do universo neo-platônico está na dinâmica do emanatio, raptio e remeatio, isto é, na emanação dos seres a partir de Deus (emanatio), a conversão da alma ao Criador que a chama (raptio) e o regresso ao Divino (remeatio). Onde está Flora, o pintor representou a emanatio, a descida do divino ao concreto terrestre. Mas, ao centro, o filho de Vênus fere a alma sedenta de verdade. Castidade, iniciada pela Beleza e pela Volúpia, aceita um amor que a afasta da terra. Deixa-se levar (raptio) e volta-se para Deus. Mercúrio a guiará para a contemplação da Divina Beleza (remeatio).

É possível, portanto, a partir da obra, compreender a fórmula antes expressa por Jacob Burckhardt como a arte segundo as tarefas. Tarefas aqui entendidas como as comitências a questavam submetidos os artistas nas encomendas, no culto público, no gosto erudito eno gosto popular. As concepções neo-platônicas da Academia de Florença estavam nas raízes do povo italiano pela sua história pregressa, seus arranjos sócio-políticos, suas bases pré-antigas e sua cultura artística como afirmou Jacob Burckhardt. Pela obra de Botticelli, podemos acessar as características históricas de uma Itália moderna, ainda não unificada, em que imperava o espírito da cultura renascentista. A arte, explica-nos Burckhardt, é o sintoma de longos e complexos processos culturais. As características de uma cultura, cuja origem dificilmente se deixa detectar, às vezes estão em sensibilidades veladas, presentes muito antes de se expressarem na arte, quando, então, podem tomar consciência de si próprias.[5] Assim, as manifestações artísticas como resultado de interação entre forma e conteúdo poderiam ser avaliadas e utilizadas como fonte ímpar para a compreensão da cultura de uma época.

Warburg vai ampliar os estudos e acrescentar a eles uma tônica psicossocial, considerada fundamental para os atuais estudos da imagem. Ele fará o reconhecimento de elementos que sobrevivem no tempo, as formas que traduzem a força psíquica das imagens e que tem função psicossocial e de reter a memória coletiva: a pathosformel. Termo desenvolvido por ele, as formas do pathos (do gr. paixão), foram usadas para localizar as sobrevivências viscerais da índole pagã, em tensão com a moral e a ética cristã, conflito próprio do homem do Renascimento. O pathos antigo estava relacionado a sentimentos intensos e dionisíacos em confronto com a harmonia apolínea, o controle e a disciplina da moral religiosa.

[1] Definidas dessa forma na Teogonia de Hesíodo.

[2] Citado por Jean Delumeau, op. cit, p. 222.

[3] DELUMEAU, Jean. A Civilização do Renascimento. Lisboa, Editorial Estampa, 1983, p. 114.

[5] BURCHARDT, Jacob. A Cultura do Renascimento na Itália. São Paulo, Cia das Letras, 1991. p. 219.