terça-feira, setembro 19, 2006

Mistério Cotidiano

No ritmo das horas
mãos ordinárias
ensaiam gestos claros
cegos, comuns.
Pesados coturnos
dançam no escuro
com pés previsíveis
rápidos, cadentes.

Mas meu coração sorri
com Djavan, em segredo.

Se eu tivesse mais alma pra dar,
eu daria.

quinta-feira, setembro 14, 2006

Amor além da vida

Tristão acorda ao lado de Isolda com cara amassada. Discute com ela a arrumação da cabana na floresta idílica, reclama da comida do dia anterior. Dá para imaginar isso? Romeu entediado com Julieta, Psique dizendo a Eros que está naqueles dias? Não, não dá. Deve ser por isso que meu primeiro e, único amor - único em muitos sentidos, vale dizer - sonhou comigo a noite toda. Contou-me hoje, num telefonema na hora do almoço. Sobrevoávamos a cidade de mãos dadas. Havia um ataque de naves alienígenas. Éramos super-heróis. Encontraríamos a salvação. Foi um sonho tão real, explicou em meio a outras conversas, com aquela polidez encantadora. Pediu-me que interpretasse o sonho, se um dia lhe desvendasse o significado. Ficarei em silêncio. Não lhe direi que o sonho está em seu olhar sobre nós: no que está acima do bem e do mal. Eros e Psique juntos, no Olimpo, Tristão e Isolda selando o seu destino num amor além da vida. Sem concretudes, por favor. Este é o nosso lugar: o que é intocável e não pode ser realizado nunca. Foi ruim, foi bom. E é assim, a vida.

sexta-feira, setembro 08, 2006

Entre o Mar e o Cerrado

p/ Joel

Tenho sido o que em mim fingiu ser eu, e quando fui verdadeiro não me reconheceram, e fui visto como estrangeiro. Tenho sido para mim mesmo um fingimento surdo de não querer ser quem Eu Sou. E eu bem que queria não chorar por nada que a vida me levasse ou trouxesse. Jamais encontrei o meu menino em mim. Uma certa nostalgia faz-me ter saudades do cerrado quando estou no mar, e maravilhar-me de mar quando estou no cerrado. A parte que em mim é vasta não sabe sentir solidão. Quando sou vasto como o grande silêncio, contenho multidões.

(...)

Já não escrevo para que me amem, nem mais escrevo só para não morrer. Hoje escrevo enquanto vivo.

(Brasigóis Felício – Vozes do Farol).

quinta-feira, setembro 07, 2006

Tarô Mítico

O homem é o sonho de uma sombra. Deve sofrer para compreender. Oréstia, Ésquilo.
Acendo o incenso, coloco um música suave, forro o chão com a toalha rúnica e espalho as lâminas em cartas claras. Íris, a mensageira, enfrenta as dificuldades da estrada. O carro corta-lhe o caminho, impede-lhe de realizar-se como Helena, a Rainha de Copas, uma mulher com vocação para o amor. Está sob o peso de decisões importantes, impasses. Aparentemente, ela viaja rumo à conclusão da viagem. Todavia, num nível mais profundo, submete-se à vontade maior de Zeus, o deus dos deuses. No passado, era com a fertilidade e a abundância solar de Deméter que ela se identificava. Hoje, é no mundo de Hades que caminha. Como a Sacerdotisa - Psiqué, desce as escadas, na escuridão, para o encontro marcado com Perséfone, sua sombra. É sua face de trabalho incessante que mostra aos outros. Ocultamente, entretanto, está submetida às determinações de Apolo, o deus solar. Sob as ordens dos deuses, Orestes, aquele que nasceu marcado pelo peso da maldição familiar, sugere: faça o que está determinado e aceite as limitações momentâneas do seu destino.

domingo, setembro 03, 2006

Banal

Nino faz som no meu ouvido que funciona. Vejo os números da hora embaçada no visor do relógio. 5:30h. É cedo. Meu corpo pensa enquanto minha mente obriga-me a manter-me alerta. Preciso pegar os papéis do mestrado para a reunião. Sento-me na cama e coloco o Nino no colo. Encosto-lhe em mim e faço-lhe carinho por alguns minutos. Digo-lhe frases idiotas e ele retribui com aquele olhar sonhador. Deixo-o ronronando enquanto sigo cambaleante para o quarto de Maria Clara. 5:45h. Checo as horas para manter-me em pé. Preciso preparar a aula de depois de amanhã. Forço o dia, acendo a luz e compenso o ato com massagens nas costas e algumas frases de carinho. Já é hora. Ela faz um gesto reflexo: oferece-me os braços, como se ainda fosse um bebê de colo. Abraço-a com amor e tento estimular o dia com frases de efeito. Nino se faz presente, interpondo-se entre nós para receber atenção. 6:30h: informo-lhe, num tom ameaçador. Preciso enviar o artigo para o congresso daqui a cinco dias. Deixo-a e corro com a comida. Ração para o Nino, café, suco de laranja. Nino convida-me para uma corrida nos corredores. A TV conta-me do mundo, dos dias. Preciso ligar para a advogada hoje, sem falta. 6:30h. O comentarista avisa-me, sem mentir. Maria Clara chega na cozinha, quando já terminei de tomar o café. Ela examina as possibilidades com despreocupada calma e eu coloco a xícara na pia indicando o fim do ritual. Arrumo a mesa, desligo a tv e apago a luz. Ela reclama algo e o sol se faz ver no horizonte. 6:40h. No banho, registro que preciso corrigir os trabalhos dos alunos até daqui a dois dias. Ouço-a com a escova de dentes. Ao prepararmos a saída, invejamos o sono matinal do Nino, agora aconchegado no sofá da sala. Preciso levar Maria Clara ao dentista hoje. Passo batom no elevador, sem olhar-me. Preciso ir na gráfica aprovar o folder do curso. Faltam cinco minutos para as 7:00h. No carro, ouvimos “somos quem podemos ser”.

sábado, setembro 02, 2006

Barroco

em contrapontos
solidão
variações em fuga
euforia
simetria harmônica
tristeza
em episódios livres
e sacralidade
no lirismo contínuo
sob conflitos
hoje só um largo de Bach