domingo, agosto 28, 2005

O Anjo Nosso de Todo Dia

Os Anjos tornaram-se tão discretos!
O meu já nem me faz perguntas.

...Não te movas se, de repente,
o Anjo se senta à tua mesa;
Alisa, com vagar, os breves vincos
que a toalha faz, debaixo do teu pão.
Convida-o para a modesta refeição,
Que também ele lhe saboreie o gosto,
E possa levar aos lábios impolutos
Um pobre copo de uso cotidiano.

(Rilke)

sexta-feira, agosto 26, 2005

O Livro

Foi depois de alguns meses que minha filha havia nascido que o encontrei. De uma forma inesperada. Vi o livro na estante de minha mãe. As páginas já um pouco gastas pelo tempo não apagavam a imagem estampada na capa: um belo rosto masculino envolto em chamas. Abandonei-o na cabeceira da cama. Por dias. Meses. Não me lembro. Um dia, deitei-me bastante cansada. Minha filha já estava com alguns meses e eu ainda lidava com a maternidade de uma maneira extrema, dolorida, por razões que não consigo explicar. Além de tudo, sentia-me mal por olhar no espelho e constatar que me encontrava bastante acima do peso. Uma bobagem que adquiria dimensões inimaginadas pelo fato de ter sido gorda na infância e parte da adolescência. Neste dia, abri o livro aleatoriamente e fiquei surpresa com o texto. O homem envolto em chamas ensinava-me como emagrecer. Achei a coincidência interessante e o ensinamento bastante implausível. Guardei-o novamente. O fato se repetiu em outra ocasião. E outra. E mais outra. Com assuntos variados. Dos mais simples e corriqueiros, aos mais complexos e difíceis. Os textos não eram textos. Eram respostas. Fiquei curiosa a respeito do autor. Investiguei sua biografia, cruzei dados, e, por fontes variadas, outras informações foram chegando a mim, num tempo pré-google. Leio este livro até hoje. Depois de muitos anos, suas mensagens são sempre novas. Tempos houve em que ele foi a coisa mais real e cheia de sentido que eu possuía, a companhia mais importante nos momentos difíceis e solitários. Já o fechei com vergonha depois de alguns puxões de orelha, já o guardei com o coração cheio de gratidão amorosa. Tenho duas versões do mesmo livro. A que não carrego comigo, deixo, também, na estante. Que ele queira ser encontrado por minha filha, em algum tempo.

quarta-feira, agosto 10, 2005

Eu não sou eu...

Eu sou este ser que caminha ao meu lado
E que não vejo,
Que às vezes chego a visitar
E outras vezes esqueço;
Que mantém a calma e o silêncio
Quando falo,
E amavelmente me perdoa
Quando sinto ódio;
Que anda por lugares
Que não conheço,
E que ficará de pé
Quando eu morrer.

(Juan Ramon Jiménez)

Contraste

Ontem à noite,
(depois de mais um dia difícil)
no auditório do Tribunal do Júri da Universidade
(eu, que ando sentada no banco dos réus há tempos)
vestida com uma beca de homenageada,
(eu, que ando despida de tudo)
recebi flores como uma celebração aos fins e recomeços,
(eu, a que coleciona carros de funerárias que vê todos os dias)
e uma placa de metal, com o seguinte texto gravado:

À Profa. Heloísa:

"Se não morre aquele que planta uma árvore e nem morre aquele que escreve um livro, com mais razões não deve morrer um educador. Pois, ele semeia nas almas e escreve nos espíritos." B. Brecht

Pós Graduação Latu Sensu História Cultural – Turma 2004/02
Homenagem dos Formandos
Goiânia, 09 de agosto de 2005.

domingo, agosto 07, 2005

Reverberação

Lya Luft

O destino trama os dias
e desfaz o sonho: demarca
meus contornos, partes
disso que sou e serei.

Quem sabe desejei demais:
milagres não me bastaram,
mas quando eu quis ser rainha
fui simplesmente humana.

A voz da vida insiste,
chama para o que salva
ou desatina:
nem sempre a entendi.

Palavras buscam sentido
para o que fiz, falhei,
conquistei e perdi
- ou que me abandonou
nalguma esquina.

(Talvez eu precisasse é dos silêncios.)

O amor nasce da calma

Amar um ser é ter o espírito apaziguado, a fim de permitir-lhe ser o que é no momento em que está.
(dos padres do deserto, segundo Jean-Yves Leloup)