sexta-feira, maio 20, 2005

Memórias




Quando tinha 8, 9 anos morava numa casa com jardim num bairro popular da cidade. Dormia num quarto com minha avó. Ainda posso vê-la sentada fazendo crochê ou rezando um terço (ela se vangloriava de rezar três terços por dia). Era uma mulher altiva e inteligente.

Lembro-me bem dos seus pés: sempre muito limpos e perfumados. Eu os sentia quando, assombrada por terrores noturnos, pulava para a sua cama nas madrugadas. Dormi abraçada a eles em muitas noites (ela nunca me negou um canto e isso sempre me surpreendeu). À essa época, já repetia a mesma história com o descontrole da memória afetada pela arteriosclerose: foi traída pela irmã e casou-se com um homem que não amava.

Guardava uma mala de fotos antigas roubada por um gatuno que pudemos ver, em vulto, pela janela. Tinha um baú com um prego saliente que me rasgou o joelho numa outra vez. Depois de muitos anos, quando eu já era adulta e a encontrava, sem me reconhecer, ela sorria e dizia: - Filha, você é tão boa...

Quando morreu, duas cenas tornaram-se, também, inesquecíveis: as escaras de suas costas sendo limpas, com carinho, pela minha mãe e minha tia e, por último, os seus pés, amarelos, pendurados no lençol através do qual um homem desconhecido carregava, sem cuidado, o seu corpo sem vida.

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