quarta-feira, fevereiro 28, 2007

A Posse

A gente pode se submeter a tudo na vida, mas vender a alma, jamais.
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Instituto Histórico Geográfico de Goiás
Discurso de Posse - Heloisa Capel - Sócia Titular, Cadeira n. 29
27/02/07


Recebi a visita de um fantasma no último feriado. Um ilustre espectro que me fez rir e indignar-me com o tom de sua conversa um tanto irônica, mas não menos atrativa em seu conteúdo: Machado de Assis. Relemos dois de seus contos definitivos e passamos os dias de descanso em animada discussão a respeito dos temas de sua narrativa: o homem, as aparências, os cargos, as convenções sociais. Refiro-me, de forma específica, a dois de seus contos: Teoria do Medalhão e o Espelho.

No primeiro, Machado de Assis apresenta-nos um pai que aconselha o jovem filho. Ensina-o a como ser um “medalhão”, um notável social. Para isso, explica, como sem adotar filosofia alguma ou desenvolver imaginação deve sorrir sob qualquer circunstância, manter atitudes de neutralidade em todas as questões, usar - de preferência - palavras sem significado, nunca ficar desacompanhado - porque a solidão é uma oficina de idéias - e não se deve ter idéias próprias para não ter que escondê-las. Cultivar atitudes, enfim, que o façam parecer, sempre, o que não é, mas que lhe trazem um nome a ser lembrado sem muitos esforços a não ser o do decoro social.

As leituras não ficaram por aí, entretanto. A teoria do medalhão, como lhe intitulou o próprio autor, coaduna-se com outra, a teoria da alma humana, desenvolvida no segundo conto machadiano, o do Espelho. Neste, Jacobina, a personagem, expõe em uma narrativa autobiográfica, a original idéia de que o homem tem, na verdade, duas almas:

uma que olha de dentro pra fora, outra que olha de fora para dentro.

A alma que olha de fora para dentro pode dominar a outra. Foi o que ocorreu com Jacobina quando foi nomeado Alferes da Guarda Nacional. Desde o episódio, ele não era mais o Jacobina, era o Sr. Alferes. Senhor Alferes era como lhe chamavam os membros da família, os amigos. Era Senhor Alferes para lá, Senhor Alferes para cá, Alferes a toda hora. Um dia, Jacobina encontrou-se sozinho, e as vozes que alimentavam-lhe a alma que olha de fora para dentro e que o reverenciavam como Senhor Alferes, não se encontraram mais ao seu lado. Ele olhou-se no espelho e, surpreso, não conseguiu mais ver sua imagem. Jacobina não sabia mais quem era. Para aquietar-lhe o espírito, precisou vestir-se, rapidamente, de Alferes e só então o Senhor Alferes deixou-se ver, novamente, refletido. Jacobina, ou melhor, o Senhor Alferes, tinha apenas a alma que olha de fora para dentro.

Ah, Machado de Assis e suas metáforas sobre a sociedade. Cansei-me do morto e fui revirar a pilha de livros em busca de vida. Um autor que reverenciasse a vida... um poeta? nada mais adequado. Eis que me surge à mão, um conterrâneo: o poeta Manoel de Barros.

Ao contrário de Machado de Assis, Manoel de Barros não se interessa pelas condecorações, nem pela fama, nem pelas regras sociais. Escreveu livros com os sugestivos títulos: Livro sobre Nada ou mesmo Tratado Geral sobre as Grandezas do Ínfimo. Faz questão de dizer que tem doutorado em formigas e que como poeta, tem um amor legítimo por coisas desimportantes. É dele este poema, ouçam e prestem atenção no final:

Um homem catava pregos no chão.
Sempre os encontrava deitados de comprido,
ou de lado,ou de joelhos no chão.
Nunca de ponta.
Assim eles não furam mais - o homem pensava.
Eles não exercem mais a função de pregar.
São patrimônios inúteis da humanidade.
Ganharam o privilégio do abandono.
O homem passava o dia inteiro nessa função de catar
pregos enferrujados.
Acho que essa tarefa lhe dava algum estado.
Estado de pessoas que se enfeitam a trapos.
Catar coisas inúteis garante a soberania do Ser.
Garante a soberania de Ser mais do que Ter.[1]

Leio mais alguns poemas de Manoel de Barros e concluo que Machado gostaria de tê-lo conhecido. Manoel de Barros tem a alma que olha de dentro pra fora.

Mas, afinal, este é um discurso de posse, pelos empossados. Cadeira de número 01, cadeira de número 7, cadeira de número 29, sócios eméritos, sócios correspondentes, sócios honorários. Imagino-os, incluindo-me, ao telefone, daqui a alguns dias: "aqui é o Sócio Emérito, gostaria de falar com a Cadeira número 29, por favor". Será divertido.

Agora, eu deveria falar de nós. Mas, sou novamente assaltada por opiniões alheias. Desta vez por Samuel Beckett, em O inominável, de quem tomo a licença da palavra:

Devo falar agora de nós...

Isto seria um passo
Na direção do silêncio.

E toda esta reflexão é para dizer, afinal, de nossa alegria por estar aqui. A importância do Instituto Histórico Geográfico nós já conhecemos. Sabemos que a instituição, fundada no século XIX, teve um papel preponderante na manutenção de dados sobre a história e a geografia no Brasil e congregou nomes significativos na construção da memória nacional. Em Goiás, o Instituto Histórico e Geográfico, fundado na década de 30, é uma entidade guardiã da documentação sobre a cultura e um centro de estudos que favorece a produção intelectual e literária na região. Isso já sabemos e nos orgulhamos.

Todavia, que toda essa nossa conversa sirva como um chamamento. Que sejamos conhecidos pelo nosso trabalho em prol dos estudos da história, da geografia, do meio ambiente, do folclore, das artes. Em aspectos pontuais, no trabalho diário.

Em consonância com Machado de Assis e Manoel de Barros, que possamos estar sonhados de glicínias e na paciente trajetória de trabalho dos caramujos, nossas almas, as que olham de dentro para fora, estejam inundadas de girassóis.

E, finalmente, que nesta disposição de conchas em nós ouvindo hinos, nossas ações falem pelos títulos que recebemos.

Muito obrigada.

[1]Manoel de Barros, O Catador. In Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo. Record, 2001.

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