quarta-feira, novembro 02, 2005

Morrer, transformar-se.

Quando já, aos trinta e poucos anos, decidi que queria viver de maneira mais intensa, comecei a buscar meios de fazer isso. Não foi bem uma atitude consciente. Uma inquietação interna obrigava-me a isso. Algo deveria ser feito. E, de alguma maneira, eu já sabia de tudo. Resolvi que enfrentaria todos os desafios de auto conhecimento. Sem os tais medos do espelho. De fato, não gostei de tudo que vi. Mas os reflexos, às vezes ilusórios, às vezes fiéis, abriram portas. Dos espelhos que eram meios de reflexão, dos que eram prisões de auto-imagem e precisavam ser destruídos. No auge da experiência, eu temia enlouquecer. Tudo parecia fora de controle. Não sem motivos internos, externamente eu me perdia. Quantas vezes, ao dirigir, perdi a noção de onde estava. Perdi, também, alguns documentos. E um sonho recorrente, um em que aparecia em uma praia deserta diante de uma enorme onda, evoluiu. Desta vez, eu me atirava ao mar. Freqüentei rodas de terapia e conheci muitas pessoas. Houve os anos de compartilhar as experiências. Houve o instante de abandoná-las. Chegou o tempo de estar só. Medo. Este foi o primeiro portal a ser transposto. Mas viriam outros muito mais difíceis e desafiadores. Ainda nesta atitude, revejo minha disposição interna para a transformação. Para a morte. E percebo que muitas capas foram retiradas. Por um lado, há a imensa dor das perdas. Por outro, uma sensação indescritível de liberdade interna. Para celebrar o processo e a aceitação da agonia vou cortar o cabelo e descobrir a nuca.


“Não dormes sob os ciprestes,
Pois não há sono no mundo.
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O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem o teu ser profundo.

Vem a noite, que é a morte,
E a sombra acabou sem ser.
Vais na noite só recorte,
Iguais a ti sem querer.

Mas na estalagem do Assombro
Tiram-te os anjos a capa:
Segues sem capa no ombro,
Com o pouco que te tapa.

Então, Arcanjos da Estrada
Despem-te e deixam-te nu,
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só teu corpo, que és tu.

Por fim, na funda caverna,
Os deuses despem-te mais.
Teu corpo cessa, alma externa,
Mas vês que são seus iguais.
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A sombra das tuas vestes
Ficou entre nós na Sorte.
Não estás morto entre os ciprestes.
..............................................
Neófito, não há morte”.
(Iniciação. Fernando Pessoa)

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