quarta-feira, novembro 30, 2005

Espelho

Olhos.
Só eles existem
no cristal especular.

Uma rosa no peito.
A dor incessante que
jorra da fonte rubra.

Um vazio incômodo.
O que preenche espaços
entre o estômago
e o coração.

Uma alma nova.
É a que sai pela boca
numa golfada
de vômito.

segunda-feira, novembro 28, 2005

Casa

Do quarto à sala
os mesmos gestos.

Portas trancadas.
Janelas de vidro.

Paredes
quadros
livros
retratos
olham inertes.

Passos
armários
a caneta
roçando o papel.

A mandala rúnica
evoca sons
sobre a mesa.

Tudo é ruído e silêncio.

sábado, novembro 26, 2005

Engano

Tomou-a nos braços
e a levou para longe do vale da morte.
Mostrou-lhe campos verdes.
Sua expressão era doce
e sua boca estava cheia de palavras.

Vê, isto tudo pode ser nosso.

Foi, então, que ela percebeu.
Aquele não era o caminho do encontro.
Agradeceu-lhe o gesto
e voltou solitária aos campos de luta.

terça-feira, novembro 22, 2005

Luxor

Ouço o vento dentro e fora.

A respiração espectral
dos olhos atrás dos portais.

Com olhos semicerrados
pela luz cega caminho.

Em círculos inúteis
por entre as altas colunas.

Tudo está reduzido a pó.
Poeira, pedra, ruína.

segunda-feira, novembro 21, 2005

Expectante

Depois do medo da noite
o dia tem uma estranha calma.
No vazio desta antiga espera
tudo agora é silêncio.

sábado, novembro 19, 2005

Estratégia

Na ataraxia
acima do pensar e do sentir,
cumpro o caminho sobre os
ponteiros dos dias.

Sonho com a luz do sol
à meia noite.

Sento-me à sombra
sob o sol do meio dia.

Então, simplesmente, caminho.

quinta-feira, novembro 17, 2005

Pendências

Em meio à correria dos meus dias insanos, no trânsito, em casa antes de cair exausta na cama, tento fixar-me em algo desimportante e inofensivo. Descubro que não são muitas as opções. Um pensamento me leva a outro, que evoca tal emoção e assim vai. De galho em galho, vou tentando desviar-me do que vejo, do que penso, do que sinto. Para resistir, sobreviver, guardo tudo no baú das pendências. Amanhã vejo isso, amanhã telefono, amanhã respondo a este mail, amanhã resolvo isto, amanhã...sempre um dia que não é hoje e que não chega nunca. Vida pendente não é vida. Mas este é mais um pensamento inútil. Abro um livro qualquer da pilha que está na cabeceira da cama e leio:

Meu coração dói-me como um corpo estranho. Meu cérebro dorme tudo quanto sinto. Sim, é o princípio do outono, e o conhecimento claro, na hora límpida, da insuficiência anônima de tudo. O outono, sim, o outono, o que há ou o que vai haver, e o cansaço antecipado de todos os gestos, a desilusão antecipada de todos os sonhos. Que posso eu esperar e de quê? Já, no que penso de mim, vou entre as folhas e os pós do átrio, na órbita sem sentido de coisa nenhuma, fazendo som de vida nas lages limpas que um sol angular doura de fim não sei onde. Tudo quanto pensei, tudo quanto sonhei, tudo quanto fiz ou não fiz, tudo isso irá no outono...

(Pessoa, F.O Livro do Desassossego)

domingo, novembro 13, 2005

O Mestre e o Cavalo

(Viagens ao Oriente, igrejas, imagens, grupos de meditação, etc, etc...quantas voltas temos que dar até chegar aqui mesmo?)
...

Um discípulo, que amava e admirava seu mestre, resolveu observá-lo em todos os detalhes, acreditando que, ao fazer o que ele fazia, também adquiriria sua sabedoria. O mestre só usava roupas brancas, o discípulo passou a vestir-se da mesma maneira. O mestre era vegetariano, o discípulo deixou de comer qualquer tipo de carne, substituindo sua alimentação por ervas. O mestre era um homem austero, o discípulo resolveu dedicar-se ao sacrifício, passando a dormir numa cama de palha. Passado algum tempo, o mestre notou a mudança de comportamento de seu discípulo e foi ver o que estava acontecendo. "Estou subindo os degraus da iniciação, foi a resposta. "O branco de minha roupa mostra a simplicidade da busca, a alimentação vegetariana purifica meu corpo e a falta de conforto faz com que eu apenas pense nas coisas espirituais". Sorrindo o mestre o levou para um campo, onde um cavalo pastava.“Você passou este tempo olhando apenas para fora, quando isso é o que menos importa”, disse.“Está vendo aquele animal ali? Ele tem a pele branca, come apenas ervas e dorme num celeiro com palha no chão. Você acha que ele tem cara de santo ou chegará algum dia a ser um verdadeiro mestre"?

Sofrimento Perspectivo

Passei toda a semana lendo sobre o martírio de Jesus nos evangelhos. Não foi bem uma escolha. Foi necessário por causa da oração que um grupo de senhoras deixou aqui em casa na segunda feira para ser lido por alguns dias: o terço da misericórdia. Ele é baseado nas visões diárias que Irmã Faustina teve de todo o processo que culminou na crucificação de Jesus e que resultou naquela famosa imagem em que é apresentado com os braços abertos e com os dois raios (um vermelho e outro branco azulado) que jorram do seu coração. Eles representam o sangue e a água de suas chagas, fonte de misericórdia para o mundo. Foi chocante ler isso tudo nos detalhes, Deus do céu. Triste pensar na solidão de Jesus na hora suprema (todos o abandonaram), no escárnio, nas injúrias, na humilhação, nos seus sofrimentos físicos e espirituais. Imaginei as sensações físicas de estar pendurado pelas mãos perfuradas e morrer lentamente, sufocado, depois de muitas horas de agonia (ele foi crucificado às nove da manhã e só morreu às três da tarde). A princípio eu chorava ao ler isso, depois passei a sentir vergonha, indignação, culpa. Foi interessante ver a diferença dos evangelhos, mesmo entre os que parecem contar a mesma história e, além disso, observar a visão espiritual de João, o amado. A partir das leituras e das orações, fiquei me perguntando sobre os males do mundo. Não deveríamos meditar apenas sobre a ressurreição? Depois de uma semana pensando nisso, ontem assisti uma parte da palestra do psicólogo, teólogo e filósofo ortodoxo Jean-Yves Leloup, na TV, assim, por acaso. Vou tentar anotar aqui o que ele disse para não esquecer. Ele falava sobre o mal, sobre os absurdos. Os que existem em nós e os que estão no mundo. Afirmou que tudo tem um propósito e que chega o tempo de encará-los. Encarar a nossa sombra, a de tudo que nos parece inaceitável, em nós. Ficar frente a frente com os absurdos do mundo. Nos dois casos, há o tempo de acolhê-los com a serenidade do Cristo, sem culpas. Não há como transmutar o mal sem reconhecê-lo, ficar frente a ele. Aceitar o absurdo é uma etapa de desenvolvimento psíquico e espiritual, a da compaixão. Só a compaixão amorosa pode nos fazer ver além do mal. Só assim saberemos que tudo tem uma razão, mesmo que ela não nos pareça óbvia. Isso significa aceitar o sofrimento com uma visão perspectiva. Ele relembrou uma música de Vivaldi*: a que ele traduz o sofrimento perspectivo de Maria, a mãe de Jesus a partir de um poema medieval. Ela sofria em pé. Lembrou, também, a visão do cordeiro do Apocalipse, o que foi decepado, mas permaneceu sobre as quatro patas. Bem, por um breve instante, tudo me pareceu menos sórdido e mais coerente. Hoje vou me concentrar nas descrições de Lucas, às três horas da tarde, hora em que, segundo Irmã Faustina, devemos pedir pela misericórdia e pela compaixão em nós e por todos nós.
...
*Vivaldi, Stabat Mater.

quarta-feira, novembro 09, 2005

Caminhos

Podia-me dizer por favor, qual é o caminho para sair daqui? - Perguntou Alice.
- Isso depende muito do lugar para onde você quer ir. - disse o Gato.
- Não me importa muito onde... - disse Alice.
- Nesse caso não importa por onde você vá. - Disse o Gato.
- ...contanto que eu chegue a algum lugar. - acrescentou Alice como explicação.
- É claro que isso acontecerá. - Disse o Gato - desde que você ande durante algum tempo.( Lewis Carroll)


Paul Auster descreve, em Cidade de Vidro, as sensações de um homem ao andar pela cidade. Perambular pelo labirinto de caminhos que fazia sentir-se perdido. Não apenas na cidade, mas também dentro de si mesmo. Andar pela cidade era abandonar-se ao movimento das ruas. Reduzir seu olhar à observação e, neste ato, fugir da obrigação de pensar. Andar pela cidade produzia nele um saudável vazio interior, uma certa paz. Pois, afinal, o mundo estava fora dele e se apresentava de forma rápida pelas ruas, o que não permitia fixar-se em nada. Ele não era o mundo. Ao caminhar sem rumo, todos os lugares se tornavam iguais e, assim, já não importava mais onde estava. Pois ele não estava em parte alguma. E isto, afinal, era o que pedia às coisas: não estar em lugar nenhum.

sábado, novembro 05, 2005

Raul Gil

Raul Gil é a via da iluminação. Era minha certeza recorrente dos sábados. Dos finais de semana, quando meu corpo doía mais do que o costume, quando minha mente trabalhava, mesmo sem permissão. Sábado era dia de parar (e se paro, vejo; e se vejo, sinto; e se sinto, sofro). Então, concentrava-me no Mestre Raul, nas suas piadas sem-graça, no seu humor pastelão que lembrava os programas domingueiros do Chacrinha com gosto de infância no bairro. Emocionei-me com os anjos que cantavam, que traziam histórias sofridas e o sonho da arte. Lá havia uma menina que só interpretava sucessos da MPB. E o fazia com tanta maestria e seriedade que dava gosto de ver. Havia outra que, de maneira bastante original, mesclava a música clássica com arranjos de rock. Havia, também, uma dupla que cantava músicas de raiz, cujo vocalista, de quinze anos, tinha a voz mais bonita e grave do que a do Tião Carreiro e Zé Ramalho juntos. E havia um menino, Mateus, que me fez chorar ao ouví-lo cantar Planeta Água. Parecia uma oração. Ele tinha uma voz doce, emocionada, e os olhos mais tristes que já tive a oportunidade de ver numa criança.

Por momentos, cheguei a bendizer a Record e a Igreja Universal do Reino de Deus.
O Programa não acontece mais a partir de hoje. Pena.

sexta-feira, novembro 04, 2005

João de Barro

Alice Capel

Sentada no banco junto à fonte,
solitária e introspectiva,
observo os pássaros que gorjeiam alegres .

O João-de-barro pousa no teto de sua casinha.
Minutos depois vejo-o entrando e saindo,
levantando as asas
num gesto de louvor e contentamento.

Tive vontade de entrar naquela morada,
tão pequenina e aconchegante.
Ah..se pudesse... estaria ali, quietinha, em silêncio,
Assim ,talvez , ficaria incólume do frio que reside
em minha alma.

É impossível manter este anseio infantil...quimérico.

Volto-me para outras paragens
Revejo os pássaros alegres...ágeis...barulhentos.
Eles vão e vem.....voam e repousam num festim
sem igual.

Em pares, voam muito alto e alguns retornam.

Há aquele que se distanciou do bando, sem par,
solitário e triste, tenta alcançar os companheiros
que se foram...para sempre.

quarta-feira, novembro 02, 2005

Morrer, transformar-se.

Quando já, aos trinta e poucos anos, decidi que queria viver de maneira mais intensa, comecei a buscar meios de fazer isso. Não foi bem uma atitude consciente. Uma inquietação interna obrigava-me a isso. Algo deveria ser feito. E, de alguma maneira, eu já sabia de tudo. Resolvi que enfrentaria todos os desafios de auto conhecimento. Sem os tais medos do espelho. De fato, não gostei de tudo que vi. Mas os reflexos, às vezes ilusórios, às vezes fiéis, abriram portas. Dos espelhos que eram meios de reflexão, dos que eram prisões de auto-imagem e precisavam ser destruídos. No auge da experiência, eu temia enlouquecer. Tudo parecia fora de controle. Não sem motivos internos, externamente eu me perdia. Quantas vezes, ao dirigir, perdi a noção de onde estava. Perdi, também, alguns documentos. E um sonho recorrente, um em que aparecia em uma praia deserta diante de uma enorme onda, evoluiu. Desta vez, eu me atirava ao mar. Freqüentei rodas de terapia e conheci muitas pessoas. Houve os anos de compartilhar as experiências. Houve o instante de abandoná-las. Chegou o tempo de estar só. Medo. Este foi o primeiro portal a ser transposto. Mas viriam outros muito mais difíceis e desafiadores. Ainda nesta atitude, revejo minha disposição interna para a transformação. Para a morte. E percebo que muitas capas foram retiradas. Por um lado, há a imensa dor das perdas. Por outro, uma sensação indescritível de liberdade interna. Para celebrar o processo e a aceitação da agonia vou cortar o cabelo e descobrir a nuca.


“Não dormes sob os ciprestes,
Pois não há sono no mundo.
..............................................
O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem o teu ser profundo.

Vem a noite, que é a morte,
E a sombra acabou sem ser.
Vais na noite só recorte,
Iguais a ti sem querer.

Mas na estalagem do Assombro
Tiram-te os anjos a capa:
Segues sem capa no ombro,
Com o pouco que te tapa.

Então, Arcanjos da Estrada
Despem-te e deixam-te nu,
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só teu corpo, que és tu.

Por fim, na funda caverna,
Os deuses despem-te mais.
Teu corpo cessa, alma externa,
Mas vês que são seus iguais.
. .............................................

A sombra das tuas vestes
Ficou entre nós na Sorte.
Não estás morto entre os ciprestes.
..............................................
Neófito, não há morte”.
(Iniciação. Fernando Pessoa)