Todas as dores podem ser suportadas
se você as puser numa história
ou contar uma história sobre elas.
Isak Dinesen

Andava sem rumo pelo centro da cidade. A certa altura, tirou os sapatos, pois lhe doíam os pés. Ninguém a percebeu. Olhou-se em vitrines coloridas, observou figuras indiferentes, e uma música antiga na decadente loja com discos de vinil a fez chorar. Lembrou-se de quem era. O corpo pedia o descanso final. As ruas acesas pelas luzes dançantes, o vai e vem de carros enlouquecidos, o trânsito alucinado de pessoas apressadas. Tudo era movimento e ruído. A vida era tão insuficiente. Sentiu-se só, em silêncio. As portas da capela aberta eram um convite ao recolhimento, mas havia gente demais, padres e palavras em excesso, rígidas convenções e incômodas músicas natalinas. Mendigos abordavam carros e passantes. Sentiu-se como eles. Suplicando à vida. Naquele dia, todo o sofrimento do mundo pesava sobre os seus ombros. Por que diabos não desistia? O viaduto sobre a rodovia era um chamado. Olhou a rua, calculou a altura e imaginou segundos de um vôo cego. Teve tonturas e sentou-se com o rosto entre os joelhos. Ninguém a notou. Uma estrela jovem já se fazia ver entre os edifícios. Maldita luz que derrotava a noite da queda na escuridão. Levantou-se e caminhou cambaleante, com um fio de esperança, naquela direção. Estava gelada, mas não sentia frio. O estômago doía, mas não era fome de alimento. Casualmente, um filhote de gato atravessou-lhe o caminho. Era magro e parecia triste. Entreolharam-se. Estáticos, temerosos. O felino aproximou-se devagar para cheirar-lhe os dedos trêmulos de hesitação. Sentou-se no meio fio com o gato a enroscar-lhe as pernas. Tentou lembrar-se do rumo de casa e se havia leite na geladeira. Com o gato no colo, só conseguiu perceber as luzes fortes, ouvir o freio ensurdecedor de carros que se chocavam e sentir uma dor imensa. Naquele dia, soube, afinal, o que é morrer de amor.
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imagem: Starry Night - V. Van Gogh
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