quarta-feira, novembro 15, 2006

Redenção

Todas as dores podem ser suportadas
se você as puser numa história
ou contar uma história sobre elas.
Isak Dinesen
Andava sem rumo pelo centro da cidade. A certa altura, tirou os sapatos, pois lhe doíam os pés. Ninguém a percebeu. Olhou-se em vitrines coloridas, observou figuras indiferentes, e uma música antiga na decadente loja com discos de vinil a fez chorar. Lembrou-se de quem era. O corpo pedia o descanso final. As ruas acesas pelas luzes dançantes, o vai e vem de carros enlouquecidos, o trânsito alucinado de pessoas apressadas. Tudo era movimento e ruído. A vida era tão insuficiente. Sentiu-se só, em silêncio. As portas da capela aberta eram um convite ao recolhimento, mas havia gente demais, padres e palavras em excesso, rígidas convenções e incômodas músicas natalinas. Mendigos abordavam carros e passantes. Sentiu-se como eles. Suplicando à vida. Naquele dia, todo o sofrimento do mundo pesava sobre os seus ombros. Por que diabos não desistia? O viaduto sobre a rodovia era um chamado. Olhou a rua, calculou a altura e imaginou segundos de um vôo cego. Teve tonturas e sentou-se com o rosto entre os joelhos. Ninguém a notou. Uma estrela jovem já se fazia ver entre os edifícios. Maldita luz que derrotava a noite da queda na escuridão. Levantou-se e caminhou cambaleante, com um fio de esperança, naquela direção. Estava gelada, mas não sentia frio. O estômago doía, mas não era fome de alimento. Casualmente, um filhote de gato atravessou-lhe o caminho. Era magro e parecia triste. Entreolharam-se. Estáticos, temerosos. O felino aproximou-se devagar para cheirar-lhe os dedos trêmulos de hesitação. Sentou-se no meio fio com o gato a enroscar-lhe as pernas. Tentou lembrar-se do rumo de casa e se havia leite na geladeira. Com o gato no colo, só conseguiu perceber as luzes fortes, ouvir o freio ensurdecedor de carros que se chocavam e sentir uma dor imensa. Naquele dia, soube, afinal, o que é morrer de amor.
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imagem: Starry Night - V. Van Gogh

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