sábado, novembro 20, 2004

O Pé de Manacá*

Das Dores é uma distinta senhora em que calculo cinqüenta e poucos anos. Na última aula, trouxe-me um pequeno ramalhete de Flores de Manacá que encheram a sala de perfume. Adorei o presente. Não só pelo carinho ou pelo significado da flor e da planta (associados, simbolicamente, à morte e renascimento), mas pela história que havia me relatado no encontro anterior. Explico.
Das Dores andava triste, queria desistir do curso, estava com problemas familiares relacionados a um tio doente que acolheu na própria casa, chegava sempre atrasada nas aulas, os olhos fundos, aérea nas discussões. Na sessão de orientação, contou-me o caso, e, diante da minha recusa em aceitar as conseqüências dessa difícil conjuntura, perguntou-me se poderia realizar o trabalho final a partir de uma narrativa pessoal. Adiantou-me que quando era criança, em Formosa, interior de Goiás, vivia junto à avó, uma mulher sábia e carinhosa. Vó Leonora era uma mulher excepcional. Das Dores contava com ela para responder as perguntas mais difíceis, aconselhar em casos complicados, e ouvir histórias, muitas histórias. Este relacionamento, que durou toda primeira infância de Das Dores, tinha como palco, o grande quintal da casa de D. Leonora, num local específico: embaixo de um gracioso Pé de Manacá. Ali, acomodadas em pequenas banquetas, avó e neta viveram muitas emoções. D. Leonora falava sobre tudo, sobre a vida, a natureza, as formigas, coisas grandes e ínfimas. Um dia, D. Leonora ficou doente e veio a falecer. Das Dores sentiu faltar-lhe o chão. Não poderia ser verdade, custou a acreditar, queria ver com os próprios olhos. Por sua tenra idade, a família não permitiu que chegasse perto do corpo tão querido da Avó. Sua mãe preparava-lhe a mortalha de cor violeta e costurava um travesseiro. Foi quando Das Dores lembrou-se do Pé de Manacá. Colheu então galhos e flores e os ofereceu à mãe para que enchesse a almofada que ficaria sob a cabeça de Vó Leonora.
Passaram-se muitos anos. Das Dores completou quarenta anos e descobriu que estava com câncer no útero em estado avançado. Reuniu os filhos, inclusive a menor, de apenas cinco anos, e explicou que poderia não sair viva do hospital onde realizaria uma operação para a retirada do tumor. Distribuiu responsabilidades, tentou ser forte, não se vitimizar, pediu-lhes que cuidassem uns dos outros. Eis que depois de alguns dias, no centro cirúrgico, após a intervenção, Das Dores encontra-se na mais completa solidão. Sente frio e abandono. A fragilidade dos que estão doentes sob a ação da pesada mão do destino. Nua diante de Deus e dos homens Das Dores fecha os olhos e vê um pé de Manacá. Sente-lhe o perfume, e, num acolhimento sem igual, uma mão que desliza suave sobre sua cabeça.
Das Dores sobreviveu. Está quase terminando o curso de especialização. Viva novamente evoca a história para ter forças e continuar. Em seu trabalho final, a partir de si mesma, falará de Formosa dos anos do Estado Novo, dos costumes interioranos, dos laços familiares e da vida cotidiana. Com ela aprendo novos métodos de escrever a história e absorvo feliz sua sabedoria dos recomeços.

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*O manacá-da-serra (Tibouchina mutabilis) é uma árvore originária do Brasil e em estado nativo pode ser facilmente encontrada na região da Mata Atlântica.Floresce normalmente duas vezes por ano. Entre o final do verão e o início do outono e na parte final da primavera. O interessante é observar que suas flores ao abrirem são brancas e, com o passar do tempo, gradativamente vão mudando de cor até ficarem praticamente roxas. O manacá-da-serra é uma planta pioneira, isto é, é uma das primeiras que aparece naturalmente após a derrubada da mata ou em áreas em processo de regeneração florestal. Devido a essa característica ela é de fácil cultivo e não é exigente. Praticamente não é atacada por pragas e doenças, não é muito exigente quanto à fertilidade do solo. Gosta de umidade atmosférica alta, clima quente, solo bem drenado. É de sol pleno. Há espécies de borboleta que só conseguem completar seu ciclo de transformação ao se alimentarem de manacá.

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