sábado, novembro 20, 2004

Cristo em Aço*


A primeira vez que entrei na Igreja do meu bairro deparei-me com a escultura painel de Cristo Crucificado. Uma escultura monumental em estrutura metálica. A representação é dura, de uma aspereza ímpar. O material parece ter sido torturado para adaptar-se à forma. São cones, fragmentos de aço combinados para representar Jesus em sua hora final. Sentia uma dor fria ao olhar para ela. Podia ouvir as marteladas agressivas do escultor na matéria prima. Sentia a resistência do material, sua capacidade de cortar e ferir, sua temperatura ártica. Eu não sabia muito bem o que estava fazendo ali e mal conseguia fixar o olhar no painel do altar central. Meu coração estava pesado e aquela figuração não o acolhia. Havia desconforto. Era muito cedo e fazia frio. Sentei-me num banco discreto e esperei para ouvir palavras que não compreendia. Num instante, uma senhora abordou-me: queria que eu lesse um salmo. Ofereceu-me rápidas explicações e desapareceu. Subi ao altar, ao lado do Cristo em aço torturado e, um pouco tonta, li o salmo num só fôlego. Eu não sabia que deveria dar pausas para que as pessoas repetissem a frase principal. Apesar do erro, não fui repreendida. Ficaram todos em silêncio e o ritual seguiu seu curso. Sentei-me novamente e mantive-me com a cabeça baixa. A fala do sacerdote parecia estar numa língua desconhecida. Eu não conseguia pensar, racionalizar, inferir alguma lógica em tudo aquilo. Só nós existíamos: eu, meu coração pesado e um Cristo torturado em aço. Aos poucos, a dor foi se transferindo para minha garganta e saltou-me aos olhos. Assim, com a visão turva o Cristo me parecia envolto em nuvens e flutuava num universo de cimento e metal. Acho que naquele momento pude compreender a dor do sacrifício, aceitá-lo, sentir-me próxima a Cristo. Esta sensação, de um consolo quase cúmplice, levou-me muitas vezes a este local. Eu leria o salmo em muitas outras ocasiões, usaria o púlpito para ler e comentar as escrituras, exploraria o altar com crianças e adolescentes para chamar a atenção para o mistério. Mas, o Cristo dilacerado estaria sempre lá, lembrando-me do sacrifício, incomodando-me com a sua dor, servindo-me de espelho para o enfrentamento e a aceitação de todas as feridas.
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*Painel Escultura do artista paulista Caciporé Torres instalado na Paróquia Nossa Senhora de Fátima em Goiânia.

Um comentário:

Sue disse...

Eu também conheço esta dor, amiga. Você, que já me escutou falar dela tantas vezes, bem sabe.

Tem também o grande amor não-correspondido. Jesus nos ama, mas quantos o amam de volta? De verdade? quantos aceitam abrir o coração e sentir esta dor?

Você eu sei que tem tamanho de alma e força de espírito, e um lindo coração preparado para isto.

E o Cristo de metal, que me repeliu, torna-se de repente mais bonito, mais humano, mais real.

Um beijo com muito amor