domingo, outubro 02, 2011

Psicopompo


Auguste Rodin.
Gênio do Repouso Eterno, 1899
Pinacoteca. Parque da Luz/SP

Penetra surdamente no reino das palavras...
Drummond. Estação da Luz/SP

Já não me importa ganhar coisas. Nem pessoas. Muito menos o mundo. Ver tudo da minha janela já me basta. Viajo por obrigação. Com objetivos definidos, datas e locais bem arranjados. Mas, faço sempre com má vontade, nunca sem tensão. Foi assim que cheguei pela primeira vez em São Paulo este ano. Cidade ambígua e silente. Sim, havia muito silêncio no murmúrio indefinido das ruas, nas conversas esparsas, no deslocamento rápido e ensimesmado de pessoas nos ônibus, nas estações de metrô. Tanto ruído, quanto silêncio. Éramos seres impessoais, encapsulados em pequenos mundos, personagens no enredo de um filme de ficção científica.
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Da segunda vez, entretanto, algo diferente aconteceu. Hospedei-me em um lugar central, entre ruas escuras cheias de histórias noturnas. De repente, a São Paulo silente dos seres de plástico, soltava o corpo e a voz entre loucos carros e sussurros, no tilintar de copos em bares bêbados, no ranger de portas entreabertas das boites, no salto de mulheres que animam o vai e vem das esquinas, na súplica dos moradores das calçadas, no cochichar de combinações e segredos dos cantos obscuros.
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Em meu temor forasteiro, encontrei um amigo. Assim, de forma meio inesperada, sem contabilizadas garantias, quase sem querer. De entrada, forneceu-me um cartão de metrô com passagens pagas para que eu não ficasse em filas. Indicou-me rotas facilitadas para que eu não me perdesse na imensidão das ruas. Pagou-me cafés. Enviou-me sms’s com msgs desconcertantes, do tipo: comeu? tá onde? te espero no bloqueio do metrô. Nos intervalos da obrigação, insistiu para que eu visitasse obras, jardins, exposições, experimentasse as frequentações do espírito. Segurou minha mão para me proteger, manter-me em equilíbrio no passo e no ritmo, sem saber que meu corpo-espírito ferido beirava a exaustão e o desalinho.
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Aceitei tudo com dificuldade e parcimônia. Preciso de tempo para digerir dádivas. Neste transe iniciático, ele foi o instrutor, o guardião-guia no umbral desta dura travessia metonímica. Com percepção lenta para os milagres do instante, não me desculpei por não conseguir absorver de forma plena os valiosos presentes que recebi, assim, de maneira tão generosa, nem mesmo sei se soube agradecer a passagem, as entradas que me transportariam da república à estação da luz. Foram momentos de diálogo mudo, instantes em que as falas sem sentido e os corpos tristes das ruas se transformariam no reino das palavras e em esculturas e formas transmutadas em beleza e criação.
(para Leo)

3 comentários:

Unknown disse...

A suavidade e familiaridade cinematográfica das cenas dão uma dinâmica e um colorido imediatos à mente do leitor.

Anônimo disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Atena disse...

Ah, Wendel, estes frames descritivos são para disfarçar a emoção...
Mil beijos!!!!