![]() |
Cristo Pantocrator com duas faces, a divina e a humana. Monastério de Sta Catarina, Monte Sinai. |
É sempre impactante encontrá-lo
nas primeiras horas da manhã. Com o seus cabelos longos, o jovem caminha por
entre os carros e lança um olhar inquiridor que atravessa o vidro e a
indiferença dos que aguardam na fila pelo sinal verde. Sua expressão é daqueles
que já não fazem mais parte desse mundo, a mesma que vemos nos que estão na
antesala da morte, para além da vida. Sobre um de seus ombros pende um cobertor
surrado que ele ajeitou à moda das vestimentas antigas: um manto que cobre
parte de suas roupas rasgadas e que ele segura com uma das mãos como se fosse
um senador romano. A
outra ele movimenta como um mudra que perfaz o gesto da bênção dos ícones
antigos: seus dedos ora se unem na indicação trinitária que abençoa e
materializa os mistérios do céu e da terra, ora se espalmam no gesto da súplica
pela esmola. Seu olhar não implora, mas solicita com legítima autoridade e nos
culpabiliza pelo que nem sabemos nominar. Algo entre a omissão social e a
podridão egoísta de nossa natureza humana e bestial. Nosso Pantocrator diário
tem a resistência do ícone que personifica: já o vimos em outras esquinas, com
as mesmas mãos sobre a boca, segurando um plástico com algo que ele aspira com
sofreguidão. Já o surpreendemos em uma corrida, de banho tomado, atravessando
as ruas como um atleta que se prepara para um festival olímpico. Mas ele sempre
comparece no horário sagrado das manhãs. E embora mantenhamos a distância por
entre o vidro fechado do carro, ele nos acompanha e continua conosco pelo resto
do dia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário