O azul evoca um movimento a um só tempo, de afastamento do homem e movimento dirigido unicamente para o próprio centro, que, no entanto, atrai o homem para o infinito, desperta-lhe um desejo de pureza e uma sede de sobrenatural. Wassily Kandinsky
As coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis: elas desejam ser olhadas de azul. Manoel de Barros
Azul do céu. Alguém vive uma tragédia: a perda do marido, um famoso compositor e da filha pequena em um acidente de carro. Acorda em um hospital, quando recebe a notícia. A vivência dessa dor é tratada de maneira sensorial, do ponto de vista interno da personagem. Cenas azuis.
Azul do vazio. Dor, silêncio, solidão. Na necessidade imperativa e inconformada de continuar, a personagem desfaz-se das referências de seu passado. Não sem antes revisitar a casa, contemplar as sobras de vida a animavam. Dentre os objetos, um pirulito. Degusta-o, tritura-o com força instintiva entre os dentes. Era um pirulito azul.
Azul do não estar em outro lugar, a não ser em si mesmo. Nas sobras, um objeto é preservado: um móbile de pequenos fragmentos de cristal lapidado. Brilho em meio à vacuidade, o móbile é pendurado na sala de outra casa, anônima, local onde se refugia para livrar-se do que foi, dos que foram, do que poderiam ser. O móbile é azul.
Azul da dor contida. Na estrada solitária em busca de um outro lugar, ao caminhar junto a um muro, desliza intencionalmente a mão sobre as pedras até sangrar. Algo externo e forte precisava se contrapor à dor interna, fria, contida, silente, azul.
Azul da água e dos sentimentos. Mergulha em uma piscina e chora. Lágrimas que se misturam (inúteis) no ambiente azul. Azul da água que tudo dissolve e de onde tudo se recria. Azul do mergulho e do inconsciente.
Azul da suavidade das formas. Como alguém que não mais pode ir ao passado e não tem perspectiva de futuro, a personagem fixa-se em detalhes: um torrão de açúcar que se dissolve em um café, no café que dissolve o sorvete. O doce e o amargo, o quente e o frio. Dissoluções. Sentimentos que levam ao azul.
Azul de frias recordações. Um jovem devolve a ela um crucifixo arrancado de seu pescoço durante o acidente. Ela o rejeita. Rejeita a cruz, o sacrifício, a referência antiga. Azul do distanciamento de velhas e desnecessárias bases de apoio.
Azul da libertação dos vínculos (afetivo-familiares, religiosos). A liberdade de fixar-se no que resta em meio à solidão, ao silêncio, à dor pacificada. A personagem reescreve a sinfonia do marido morto a partir das suas próprias referências. Desliza os dedos sobre uma partitura e a música é azul. Uma sinfonia para a união das nações. A busca por novas identidades em contraposição e/ou união-diálogo com o outro. Encontra a amante do marido morto, grávida. Mais um nível de libertação das idolatrias afetivo-emocionais. A personagem ampara a amante e elabora a traição. Uma nova criança nasceria. (Re)significação da união, da perda e da fragmentação em outros níveis.
Sim, a liberdade é azul.
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Trois Couleurs: Bleu (Krzysztof Kieslowski, 1993)
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