terça-feira, junho 16, 2009

Carta Capital

Minha filha queria saber sobre as denúncias em torno da morte de Jango que foram publicadas em Carta Capital e ele nos ouviu conversar a respeito. Ele, que, aos oitenta, é sempre o que assiste aos jornais, lê os livros da moda e as revistas semanais, trouxe-nos um exemplar no domingo seguinte, e em todos os outros em que almoçamos juntos. Depois do episódio, ele sempre nos compra uma Carta Capital antes de dirigir meia hora para pagar nosso almoço, contar histórias que me fazem rir, tomar sorvete ao final das refeições e sair dirigindo à toda como se tivesse vinte e nove anos (por muitos anos, meu pai nos disse que fazia vinte e nove em aniversários). Ontem, depois de uma quimioterapia, assistimos parte do jogo do Brasil juntos. No seu enrolado portunhol, ele reclamou de um tal de Pato, indignou-se, aliviou-se com o pênalti que deu a vitória apertada ao Brasil, enquanto eu, secretamente, torcia para os egípcios. Controlei sua febre com medicamentos e minha natural chateação de colocar a mão nele de meia em meia hora. Ele se esquivou e protestou com seu habitual Reina, eu sou homem. Dormimos pouco à noite, mas hoje cedo, ele mal esperou o dia clarear para agradecer-me, dizer que tudo ia ficar bem e despedir-se olhando o relógio, planejando inadiáveis compromissos. Ao fechar a porta depois de acompanhá-lo ao elevador, segurei a última Carta Capital, a que dá mais detalhes sobre a morte súbita de Jango. E foi impossível não pensar na morte e nos pequenos detalhes que fazem toda uma vida.

domingo, junho 14, 2009

Por aí...

O fato:

Levar-te à boca,
beber a água
mais funda do teu ser -

se a luz é tanta,
como se pode morrer?

Eugénio Andrade
Daqui: Ene Coisas

E a explicação:

Dizer que a paixão implica em perda da razão não parece correto. Talvez seja mais apropriado dizer que a paixão carrega uma outra razão. A paixão, para mim, é como a leitura de um poema. Ou nos arrebata ou não é poesia. Nem paixão. A paixão é como uma palavra, num poema, uma palavra que busca uma rima. Quando duas palavras se beijam, nasce a poesia. Para mim, a paixão tem a ver com aquela "realidade ficcional" na qual estamos imersos quando lemos um romance: uma suspensão temporária do descrédito do mundo e do outro.

Rodrigo Garcia Lopes
E daqui: Orfanato Portátil